É “real oficial”: a misoginia faz parte do modelo de negócio das plataformas
Foi publicado no dia 8 de março o relatório de pesquisa Golpes, fraudes e desinformação na publicidade digital abusiva contra mulheres, do NetLab – Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisa faz parte da iniciativa do Ministério das Mulheres do Governo Federal, Brasil Sem Misoginia.
Na arena midiática contemporânea, não poderia faltar o espetáculo do abuso de gênero e todos os tipos de ameaças violentas a mulheres, não só as que têm voz pública, como jornalistas, comunicadoras, parlamentares, influenciadoras, atrizes, escritoras, ou qualquer outra profissão que faça uso do espaço pretensamente público das plataformas. O fenômeno pode atingir mulheres anônimas, e também aquelas que talvez apoiem discursos misóginos e machistas em nome da “liberdade”.
É o que revela a pesquisa, que analisou 1.565 anúncios considerados tóxicos, coletados durante 28 dias, entre janeiro e fevereiro deste ano. 35% destes anúncios são do tipo fraudulento e que podem ser enquadrados em práticas puníveis pelo Código Penal, entre eles: estelionato, fraude, venda de substâncias supostamente medicamentosas, oferta de prática ilegal em profissões da área da saúde, para praticar golpes. Não é de se espantar que 80% dos anúncios versam sobre o corpo da mulher.
Outros anúncios têm como público-alvo os homens que odeiam mulheres, chamados de “masculinistas” e que compõem a “machoesfera”. Vendem manuais e dicas. Foi durante o gamergate, em 2014, que a comunidade misógina começou a emergir na internet (já organizada nos chans, os fóruns da web abaixo da superfície).
Jornalistas de videogame que reportavam sobre a influência feminista neste universo, assim como desenvolvedoras mulheres, foram sistematicamente atacados de maneira organizada, com vocabulário e estratégias específicas, prática que infelizmente perdura até hoje e que é visível especialmente contra jornalistas mulheres.
Zoe Quinn, desenvolvedora de games, foi a primeira a ser atingida neste episódio porque namorava um cientista da computação. Ao terminar o relacionamento com o namorado, este a acusou de ter oferecido sexo a um famoso blogueiro de games para que ele fizesse uma boa avaliação dos seus jogos.
A semelhança com outros episódios conhecidos no Brasil, como a difamação contra jornalistas neste mesmo tom, não é mera coincidência. Faz parte de uma prática que tem método e que tem objetivos claros: promover a misoginia como um caminho viável, uma ideologia de vida para os homens que não são mais autorizados a tratar uma mulher como em 1950.
Quem viu a famosa série Mad Men, sobre o ambiente em uma agência publicitária no final dos anos de 1950 e início dos 1960, tem na lembrança as cenas. Assédio, intimidação e estupro eram corriqueiros no ambiente de trabalho do então nascente campo da comunicação.
Também nas redações brasileiras dos anos 1970, 1980, 1990, 2000, temos casos reiterados de assédio a jornalistas mulheres e até de assassinato, cometido por um então diretor de redação de um dos maiores jornais brasileiros, O Estado de S. Paulo. Antônio Marcos Pimenta Neves assassinou a ex-namorada e também jornalista, Sandra Gomide, pelas costas, em 2000. Foi preso somente em 2011, cumpriu cinco anos e depois passou para regime aberto.
A mulher é sempre um alvo fácil de atacar, e isso é claro no ambiente digital. Por isso, causa espanto e preocupação a falta de cuidado das big techs com os ataques sistemáticos já mencionados, e com o ecossistema publicitário.
Conclui-se que o ódio às mulheres é lucrativo, dá cliques, e nos expõe ainda mais, pois nossos dados e metadados são vendidos a esses anunciantes tóxicos e sujeitos a vazamento. Menos mulheres podem estar dispostas a cobrir e a debater na internet este tipo de pauta, pois o efeito é de autocensura.
Os temas de gênero estão entre os mais atacados na internet, e o objetivo é de justamente diminuir a circulação deste tipo de conteúdo e impedir a diversidade.
Marte Høiby, pesquisadora e jornalista norueguesa, cunhou o efeito triplo da violência digital contra mulheres jornalistas, com três dimensões. O patriarcado, a falta de regulamentação das big techs e o sentimento anti-imprensa.
No caso do relatório da NetLab, fica evidenciado que as dimensões do patriarcado e da falta de regulamentação formam dois vetores que dão condições para que as mulheres sejam atacadas só por serem mulheres, em uma estrutura claramente misógina.
O efeito não fica só na internet, pois afeta a saúde mental das mulheres e consequentemente seus corpos, se estendendo para a família (isso quando as fotos dos filhos não são vazadas e os mesmos ameaçados de morte, ou, se forem filhas, de estupro).
O agravante deste ecossistema é justamente a natureza do próprio ambiente cibernético, sua capacidade de feedback automática, que confirma instantaneamente o sucesso deste tipo de violência digital, seja nos anúncios veiculados e analisados pelo NetLab, seja nos ataques perpetrados por milícias digitais.
Na primeira coluna publicada neste jornal, comentei sobre a “criminologia cultural”, que analisa as imagens de representação do crime e da violência, e como elas fazem parte da cultura midiática contemporânea. Essas imagens circulam em loops nas coberturas televisivas, por exemplo, gerando uma espécie de feedback instantâneo.
No caso de Eloá Pimentel, em 2008, custou sua própria vida. A cobertura televisiva foi ininterrupta, o assassino foi entrevistado ao vivo em um programa de variedades, alcançando notoriedade e se fortalecendo na fama imediata. Precisamos de um feedback negativo, que possa parar o loop de agressões às mulheres na internet. É “real oficial”.
(*) Daniela Osvald Ramos é professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
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