IA que "fala" com morto e memoriais online: redes destruíram o luto?
Psicanalista explica como a tecnologia transformou o modo de lidar com a perda e até onde ir com elas
Velórios virtuais, memoriais online e uso de IA (Inteligência Artificial) para lidar com a perda. A tecnologia pode ser, ao mesmo tempo, o remédio e o veneno quando o assunto é luto; o que muda é a dose. Na hora da despedida, pessoas recorrem até o chat para negar a morte. A tentativa desesperada é reflexo de como viver o luto mudou nos últimos anos e do quanto as redes sociais ajudam e também transformam tudo em espetáculos mórbidos.
RESUMO
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A tecnologia tem transformado a forma como as pessoas lidam com o luto, oferecendo desde velórios virtuais até memoriais online. Após a pandemia de Covid-19, que restringiu as cerimônias fúnebres presenciais, as redes sociais se tornaram um espaço comum para expressão do pesar, embora possam transformar a morte em espetáculo. A psicanalista Raissa Ferreira alerta que, embora ferramentas digitais possam auxiliar no processo de luto, seu uso excessivo pode prejudicar a elaboração da perda. A especialista destaca que a hiperconexão mantém uma "identidade digital" do falecido em constante transformação, dificultando a aceitação da morte e podendo prolongar o sofrimento dos enlutados.
Julgar quem faz uso das ferramentas para aliviar a dor não é uma opção, pelo contrário, é preciso acolher e entender que, apesar de fazer mal aos enlutados, algumas coisas podem sim ser benéficas para quem está perdido. É o que a psicanalista Raissa Ramos Ferreira, especialista no tema, explica.
“O uso de mecanismos externos interfere nos processos internos; há uma alteração nisso. Ajuda ou atrapalha? Eu digo que os dois. Ajuda porque pode ser uma forma de a pessoa se reconciliar com quem faleceu e responder às dúvidas que ficaram. O trabalho que seria feito internamente pode ser terceirizado para o robô, para auxiliar. Atrapalha grandemente porque o luto requer elaboração, tempo para ser processado. A IA e as redes sociais têm outro tempo. Tudo precisa ser resolvido rapidamente, com urgência. Há um espetáculo em volta.”
Segundo ela, o uso de recursos que basicamente mantêm a pessoa viva tem que ser dosado com cuidado. A relação com a morte mudou depois da pandemia de Covid-19, principalmente devido à proibição das pessoas em velórios, que muitas vezes nem existiam. O cenário triste ficou ainda pior quando as pessoas transformam a morte em objeto de consumo.
“A conduta voyeurista de se interessar pela morte como espetáculo sempre existiu, mas as redes amplificaram isso. Porém, precisamos falar sobre ela, senão se torna um tabu. Precisamos chegar nela com mais dignidade. Antes, a morte era negada; as pessoas não queriam ter acesso a isso; era considerado mórbido; e agora elas têm acesso sem querer. ‘Quem morreu, do que morreu, como foi encontrado o morto?’”
A relação com a morte mudou. Ela pontua que antigamente demorava muito para ter notícias da morte de alguém, que isso era exposto em obituário de jornal, na rádio, santinhos. Tudo isso levava um tempo para ser processado internamente, hoje é instantâneo. Assim que alguém morre, na hora tem o santinho online.
“A agilidade de divulgação também pode alterar a narrativa do falecimento. Antes, os velórios eram longos; duravam 24 h ou até 48 h; aconteciam dentro de casa; eram eventos privados; só compareciam pessoas próximas. A morte saiu desse ambiente para o público. Agora, eles duram 2 h e são online também. Esse pular etapas dificulta o processo de elaboração interna e atropela tudo.”
O espetáculo da morte pode ser sutil, disfarçado de curiosidade. É comum ver pessoas que, quando perdem alguém, a primeira coisa que fazem é alterar a foto de perfil e colocar a típica preta e branca escrita “Luto”. Isso faz com que pessoas que sequer conhecem o morto procurem por ele nas redes.
A psicanalista atende pessoas que buscam consolo com o próprio falecido nas redes sociais. Segundo ela, a atitude é muito comum não só na clínica, mas no ambiente digital. Uma olhada por perfis de memoriais online é uma boa amostra disso.
“Às vezes, o dia está difícil e ele diz que gostaria que a pessoa estivesse ali e que esteja bem. Isso é muito novo. Esse tipo de luto é muito mais amigável do que ir ao cemitério, porque o perfil era o lugar onde se comunicavam normalmente. O cemitério é um lugar desconhecido, agressivo aos sentimentos. A própria facilidade de estar o tempo todo ali torna tudo mais amigável.”
Raissa explica que é aí que mora o perigo e é quando o recurso se torna uma grande desvantagem.
“Deixa mais difícil o processo porque a hiperconexão complica. Antes, quando a pessoa perdia alguém, perdia a conexão. Isso obrigava a pessoa a processar a morte. Agora, com a hiperconexão, o morto fica o tempo todo disponível e mantém uma identidade que continua em transformação. As pessoas podem adicionar lembranças, comentários. Existe uma entidade online que continua sendo alimentada. Dependendo da situação, isso pode piorar o processo de adoecimento do enlutado.”

Para ela, o uso de memoriais online, que são perfis mantidos para homenagens póstumas e como arquivo de lembrança do falecido, não é o problema. A chave do bom e do mal muda quando a pessoa em sofrimento pela perda transforma isso na extensão do próprio morto, como se ele ainda estivesse ali.
“O chat vai ler e-mail, ler mensagens do WhatsApp, mandar mensagens de voz, analisar o texto que a pessoa escrevia e captar fotos. É uma maneira de a pessoa continuar se relacionando, fazendo perguntas. As respostas são geradas a partir do que foi colocado lá. No Brasil, o recurso ainda não se popularizou, mas na Inglaterra é amplamente utilizado. Há um episódio da série ‘Black Mirror’ que mostra isso, ainda que de forma sensacionalista, mas o mecanismo é o mesmo.”
Santuário digital
O que antes estaria em um cemitério, em um cômodo da casa, agora está em um aplicativo nas redes sociais. Os “santuários digitais” estão cada vez mais presentes e podem ser um dos motivos pelos quais a presença de pessoas mais novas nos cemitérios tenha caído nos últimos anos.
“Antes as pessoas precisavam ir até o cemitério fazer uma visita, fazer oração, depositar uma flor. Hoje isso facilitou o acesso, com alguns cliques ela está no memorial da pessoa para fazer a conexão com o falecido, deixar uma oração, dar uma notícia, atualizar o morto.”
Para a psicanalista, para que o ato não ultrapasse o saudável, é preciso pensar no porquê de manter o perfil e qual o objetivo com isso. É exposição para o público? É algo bloqueado apenas para uso particular?
“A gente tem que levar em conta que se a pessoa utiliza aquele espaço nas redes para manter um relacionamento com a pessoa falecida, atuando como se ela estivesse viva, a gente está negando a alteridade da morte, negando a própria morte. Aí a gente prolonga o processo de sofrimento, porque o luto precisa da elaboração, do rompimento. A gente precisa que a morte seja reconhecida para que o luto seja elaborado. Isso faz toda a diferença.”
Quando o perfil é mantido para prolongar o sofrimento da perda, como um espaço de lamentações, a coisa desestrutura e não equilibra. No entanto, se o espaço serve para homenagens, Raissa diz que acha válido o uso da ferramenta.
“O processo do luto não é linear, é cheio de idas e vindas, altos e baixos. A gente está falando de uma ferramenta que dá suporte ao processo de luto. Se ela nega a morte mantendo o relacionamento com o falecido como se ele pudesse receber, isso pode dificultar o restabelecimento da vida do enlutado. Algumas pessoas precisam fazer atualizações com o falecido através das redes sociais.”
A morte do morto
Apesar de as redes serem veneno e remédio, dependendo da dose e da pessoa, há outro fator preocupante em deixar a memória da pessoa querida que morreu apenas no digital: a morte do morto, quando a ferramenta ou rede social acaba. Segundo Raissa, a psicanálise chama isso de “persistência indefinida do falecido”.
“Quando mantemos um memorial físico, mantemos ele, como o caso do cemitério, das cinzas. Já online, a persistência da presença é indefinida porque não sabemos quanto tempo isso fica online. Ficamos dependendo dos desenvolvedores das redes. Teve redes extintas, e isso pode ser uma nova configuração do luto. Você perde o local onde visitava a pessoa, pode levar ao luto novamente.”
Ela ressalta que, assim como acontece na vida, na morte muitas pessoas não têm mais lembranças do falecido senão online.
“Uma hora acaba, outras redes chegam. Isso deixa a gente refém emocional. Algumas famílias não têm mais fotos impressas, só ali nas redes, e sem perceber, perdem tudo daquela pessoa.”
Outra questão que pode gerar dor aos enlutados é o recurso classificado por muitos como invasivo, o “Lembranças”, em que o Facebook mostra recordações, muitas vezes com o morto, de momentos que a pessoa viveu nos anos anteriores.
“A pessoa está em um dia tranquilo, estável, e de repente vem uma lembrança de algo. Isso é intrusivo porque não veio da memória da pessoa, não foi construído internamente, é um objeto externo. Isso bagunça, desorganiza. Às vezes é justamente o contrário, ele fica feliz. Mas pode destruir a semana ou o mês dele, principalmente quando chega em datas comemorativas.”
Equilíbrio é a chave
Segundo a psicóloga, não tem receita secreta de como viver o luto sem ficar refém das redes. Cada pessoa vai achar a própria forma de se conectar com a pessoa falecida fora do digital ou nele, de maneira saudável. Isso pode ser feito através da meditação, espiritualidade, religião ou escrita.
“Não tem certo e errado, mas existe uma diferença brutal entre o público e o privado. A partir do momento que estamos processando nossas questões emocionais no público, temos que lidar com todas as consequências e desdobramentos disso. O que escrevemos pode ser copiado e divulgado.”
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