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Política

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil

Levantamento mostra que o desinteresse e a falta de tempo afastam o brasileiro dos livros

Por Lúrya Rocha, Agência Senado | 12/11/2025 09:05

O hábito da leitura entre os brasileiros está em queda. Em um país com mais de 200 milhões de habitantes, o número de não leitores representa 53% da população.

RESUMO

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O Brasil enfrenta um declínio preocupante na cultura da leitura, com 53% da população classificada como não leitores. Segundo pesquisa do Instituto Pró-Livro e Ministério da Cultura, o número de leitores caiu oito pontos percentuais desde 2007, representando hoje apenas 47% dos brasileiros. O estudo também revela um aumento no analfabetismo funcional, com 36% dos entrevistados relatando dificuldades de compreensão e concentração. A falta de paciência para leitura cresceu significativamente, saltando de 18% em 2007 para 40% em 2024, fenômeno atribuído à cultura da informação instantânea e ao uso intensivo de dispositivos eletrônicos.

Hoje, o Brasil tem cerca de 93,4 milhões de leitores — quem leu ao menos um livro nos três meses anteriores —, que correspondem a 47% da população. O número é oito pontos percentuais menor do que o registrado em 2007, quando os leitores eram 55% dos brasileiros, segundo a sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro e Ministério da Cultura.

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil

A queda, no entanto, não é apenas percentual. O estudo também aponta para uma diminuição da capacidade de concentração e compreensão, acendendo um alerta sobre o avanço do chamado analfabetismo funcional.

A condição, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), abrange pessoas que até reconhecem letras e números, mas não conseguem interpretar textos simples e usar a leitura e a escrita no cotidiano, o que afeta o desenvolvimento pessoal e a plena cidadania.

Retrato de um hábito em queda

Os dados da pesquisa indicam que, além da redução do hábito da leitura, houve declínio na compreensão do que se lê: 36% dos entrevistados admitiram ter alguma barreira de habilidade, como falta de concentração ou compreensão limitada.

Além disso, a falta de paciência e de foco para a leitura saltou de 18% em 2007 para 40% em 2024. Para o professor do Departamento de Psicologia da Universidade Adventista de São Paulo (UNASP), Adauto Garcia Júnior, uma das explicações para o declínio da leitura é reflexo da informação instantânea, comum na internet e em especial nas redes sociais.

O prazer pela leitura também está em queda. A parcela dos que "gostam muito" de ler caiu de 31% em 2019 para 26% em 2024. Em contrapartida, o número de pessoas que afirmam não gostar do hábito cresceu de 22% para 29%.

A pesquisa mostra ainda que há forte correlação com fatores socioeconômicos e educacionais, ou seja, pessoas com ensino superior e renda familiar mais alta têm maior afinidade com a leitura se comparadas àquelas com menos anos de escola e renda baixa.

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil

A relação com o livro muda ainda com a idade: as crianças (de 5 a 13 anos) são as que mais gostam de ler (87%), enquanto a população acima de 50 anos demonstra menor apreço pela leitura (57%). Segundo os entrevistados na pequisa, a principal motivação para ler é o gosto pessoal, seguido por distração e busca por conhecimento, enquanto a obrigação (escolar ou profissional) aparece com pouca relevância.

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil
Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil

Garcia Júnior destaca que o gosto pela leitura nasce da curiosidade e do afeto. Ele defende que a presença de livros em casa e o exemplo de pais leitores são fatores com impacto direto e duradouro sobre quem está desenvolvendo o hábito da leitura.

— Para que ele floresça, o livro precisa ser uma experiência viva, capaz de despertar emoção, diálogo e propósito. Pais, professores e líderes têm papel essencial em transformar essa curiosidade natural em hábito, cultivando tanto o prazer do texto quanto a reflexão que ele provoca — afirma.

A influência das telas e os novos formatos

Quando questionados sobre o que mais gostam de fazer no tempo livre, os brasileiros são claros: o uso de internet e redes sociais vem muito antes da leitura de livros. Para o professor Garcia Júnior, a competição pela atenção com dispositivos eletrônicos é um dos principais desafios para a formação de leitores.

— Vídeos curtos, jogos e interações em redes sociais oferecem mais gratificações instantâneas que a leitura de um livro, uma atividade que exige maior concentração.

Mais recentemente, o distanciamento das telas já mostra efeitos positivos desde a proibição do uso de tablets e aparelhos celulares por alunos em escolas pela Lei 15.100, de 2025. Garcia Júnior afirma que escolas e redes de ensino relataram aumento considerável de empréstimos em bibliotecas após a implementação da norma.

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil
Segundo especialistas, o hábito da leitura é prejudicado pelo apelo das telas Divulgação/MEC e Roberta Aline/MDS. (Fonte: Agência Senado)

Mestre em computação cognitiva, Diego Figueiredo usa um neologismo para definir a leitura hoje: é “fidigital”, segundo ele, uma fusão entre o físico e o digital. Ele concorda com a perspectiva citada pela diretora: o desafio dos educadores não é afastar a tecnologia, mas ressignificar e unir às metodologias de ensino.

— As crianças de hoje vivem em um ambiente de múltiplas telas, estímulos rápidos e comunicação instantânea, e a leitura exige o oposto: atenção, pausa e profundidade. Discordo da ideia de que afastar a tecnologia seja o caminho. Pelo contrário, entendo que o verdadeiro avanço está em compreender como a transformação digital pode se integrar às metodologias de ensino, tornando a leitura parte dessa linguagem moderna — afirmou Figueiredo.

Para ele, plataformas interativas, jogos narrativos e projetos digitais usados com responsabilidade também podem ser aliados para despertar o interesse e ampliar a compreensão por meio da experiência, principalmente entre os jovens.

Apesar da hegemonia das telas, quando se trata de livros, o papel ainda resiste: 57% dos leitores preferem o formato impresso contra 22% que optam pelo digital. A maioria afirma que consegue se concentrar melhor e compreender a história com mais profundidade no livro impresso, sem interrupções e distrações, como as notificações de mensagens que aparecem na mesma tela em que está sendo feita a leitura.

Cultura da leitura em declínio e o avanço do 'analfabetismo funcional' no Brasil
Para Diego Figueiredo, incorporar a tecnologia nas salas de aula é um dos caminhos para atrair o interesse dos alunos pela leitura Arquivo pessoal e Daiane Mendonça/Gov. Rondônia. (Fonte: Agência Senado)

'Audiobooks'

Uma junção de livros e recursos digitais já vem ganhando espaço na rotina dos brasileiros: os audiolivros (audiobooks). O percentual de pessoas que os escutam cresceu de 20% em 2019 para 23% em 2024, sendo mais valorizados entre aqueles com ensino superior e que já têm o hábito de comprar livros.

O formato levanta debates, mas especialistas o veem como uma ferramenta complementar e alternativa em meio a rotinas sobrecarregadas. Figueiredo afirma que os audiobooks são uma evolução natural do método oral de transmissão do conhecimento, mantendo viva a experiência de ouvir para compreender:

— Representam um avanço importante, especialmente para quem tem pouco tempo ou dificuldade de leitura tradicional. Também são uma ferramenta de inclusão para pessoas com deficiência visual ou outras limitações que dificultam a leitura convencional — avalia. — Acredito que o audiobook complementa, mas não substitui o livro físico. O som estimula a imaginação, mas o ato de ler aprofunda o raciocínio e fortalece a memória cognitiva.

Garcia Júnior complementa que “escutar livros” oferece benefícios distintos que podem ser mais ou menos adequados dependendo do contexto, do objetivo da leitura e de preferências individuais. Entre aspectos positivos e negativos, o livro em áudio representa uma opção viável para 54% da população, que afirmam não ter tempo para ler.

O distanciamento das bibliotecas públicas

Se a formação de leitores é um desafio, o papel das bibliotecas públicas nesse processo parece cada vez mais fragilizado. Apenas 5% dos entrevistados afirmaram ter nesses espaços sua principal forma de acesso a livros.

— As bibliotecas são espaços na sociedade que desempenham um papel vital na promoção da leitura, pois flexibilizam o acesso e o empréstimo de livros e a criação de "cantinhos da leitura" em locais públicos — enfatiza Garcia Júnior.

Para a maioria dos entrevistados, a imagem das bibliotecas ainda está atrelada a um local silencioso para pesquisa e estudo, uma visão que limita seu potencial como centro de convivência e difusão cultural. O resultado é o esvaziamento desses espaços: 75% dos brasileiros declararam nunca frequentar uma biblioteca, um aumento em relação aos 68% de 2019. Ainda entre públicos que deveriam ser cativos, os números são altos: 49% dos estudantes e 60% dos leitores não frequentam bibliotecas.

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Ao contrário do que se poderia pensar, o problema não parece ser a infraestrutura, geralmente bem avaliada por quem a utiliza. A questão reside na percepção e no desinteresse. A percepção sobre a existência de bibliotecas nos bairros piorou: 46% dos entrevistados disseram não haver uma por perto em 2024, contra 20% em 2007.

Embora o Brasil conte com 3.415 bibliotecas públicas, segundo o Ministério da Cultura, para quase metade da população elas são invisíveis. A indiferença também cresceu: ao serem questionados sobre o que os levaria a frequentar mais o espaço, 39% dos não frequentadores responderam "nada", ante 29% em 2019.

Desafios, políticas e possibilidades

A necessidade de expansão e dinamização dos espaços de leitura converge com as metas educacionais do país. Nesse sentido, o novo Plano Nacional de Educação (PNE), em análise no Congresso, estabelece como uma de suas prioridades garantir que todas as crianças estejam plenamente alfabetizadas até o final do segundo ano do ensino fundamental. O texto substituirá o PNE vigente (2014-2024).

Somado ao novo plano, o Sistema Nacional de Educação (SNE), aprovado pelo Senado no início de outubro à espera de sanção presidencial, busca organizar a cooperação entre União, estados e municípios para garantir a continuidade e coerência das políticas educacionais.

O Sistema Nacional de Bibliotecas Escolares (SNBE), sancionado em 2024, também surgiu como uma alternativa para reforçar o ensino público e incentivar a criação e a melhoria de bibliotecas no país.

Entre as diretrizes do SNBE está o treinamento e a qualificação de profissionais para o funcionamento adequado das bibliotecas escolares, o acesso à internet e a integração entre as unidades..

Projetos na Casa

Pelo menos duas propostas que tramitam no Senado e na Câmara têm o objetivo de incentivar a formação de leitores no país. O PL 286/2024 altera a Política Nacional de Leitura e Escrita para o fortalecimento das bibliotecas públicas e dos bibliotecários a partir de parcerias com instituições públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras. O texto foi aprovado em março em votação final na Comissão de Educação (CE) e encaminhado à Câmara dos Deputados, onde aguarda votação.

O Programa Jovem Senador de 2025 — iniciativa do Senado que fomenta a participação política de estudantes do ensino médio de escolas públicas do país — também gerou  proposta voltada para o estímulo à leitura. Os 27 jovens senadores formularam uma ideia legislativa que cria o programa vale-livro para alunos da rede pública de ensino, com frequência escolar mínima de 80%.

O texto foi remetido à Comissão de Direitos Humanos (CDH), que pode transformá-lo em um projeto de lei.

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Incentivo para compra de livros foi proposta pelos estudantes que participaram este ano do programa Senado Jovem Geraldo Magela/Agência Senado. (Fonte: Agência Senado)
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