As virtudes de Capitu
"A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica"
(Blaise Pascal, Pensamentos)
Leitor, leitora, aceitem o convite para (re)ler Dom Casmurro – o sétimo romance de Machado de Assis, publicado em 1900. Nele, topamos com uma narrativa em primeira pessoa, escrita por um sexagenário com longa expertise como advogado. Órfão de pai, desde criança, e criado sob a superproteção de dona Glória, eis que Bentinho é acometido pela desordem dos afetos: Capitolina aparece em sua vidinha regrada e sem-surpresas. Eles se enamoram durante a adolescência e, desde então, planejam se casar.
Periodicamente, a crítica machadiana sugere que há várias maneiras de ler a obra, seja levando em conta os aspectos socioeconômicos; seja observando a construção das personagens; seja percorrendo as partes do Rio de Janeiro em companhia do narrador; seja examinando os artifícios persuasórios no plano da linguagem… Ora, parece haver um componente que unifica essas e outras abordagens da história reelaborada por Bento Santiago: a coexistência de contrastes.
Do ponto de vista socioeconômico, as famílias Santiago e Pádua estão em posições assimétricas: no sétimo capítulo, somos informados que aos 31 anos, quando perdeu o marido, dona Glória “vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Matacavalos, onde vivera os dois últimos anos de casada”. A seu turno, o pai de Capitu tivera uma ocupação de rendimentos modestos:
O administrador da repartição em que Pádua trabalhava teve de ir ao Norte, em comissão. Pádua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorários. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem; era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se às despesas supérfluas, deu joias à mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em teatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dois meses na suposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, aflito e desvairado, ia perder o lugar, porque chegara o efetivo naquela manhã.
Pois bem, é justamente a mãe de Capitu que intervém em favor dos Pádua, quando o vizinho solicita que ela cuide de sua esposa e filha, pois ele tiraria a própria vida. Espécie de protegido dos Santigo, o senhor Pádua é mal-visto por José Dias, um agregado que mora com Bentinho e sua mãe. Espécie de conselheiro do rapazote, nem ele seria poupado pela oratória do narrador, que desde as páginas iniciais precifica a suposta lealdade desinteressada do sujeito:
José Dias tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
— Abaixo ou acima? perguntou-lhe tio Cosme um dia.
— Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando. José Dias agradeceu de cabeça. Minha mãe dava-lhe de quando em quando alguns cobres. Tio Cosme, que era advogado, confiava-lhe a cópia de papéis de autos.
A condição e o lugar dessas personagens, recheadas de discursos e condutas contrastantes, não é questão de somenos. De início, essa condição suscita o riso dos leitores; mas, à proporção que o enredo avança e o drama se complexifica, o que era simples rivalidade passa a severo antagonismo; o que era mera divergência transforma-se em disputa inescapável. A implicância entre José Dias e Pádua fazem rir; já as diferenças entre Bentinho e Capitolina prenunciam o acento trágico assumido pela narrativa, especialmente após seu casamento.
Dito isso, repare-se na linguagem empregada pelo narrador, espécie de todo-poderoso em seu libelo contra Capitolina Pádua. Note-se que, ao reexaminar sua trajetória, Capitu adquire maior importância, desde o início de sua amizade com a garota da família colada à sua casa. É sintomático que no capítulo 21, intitulado “Curiosidades de Capitu”, encontre-se a melhor (in)definição da jovem amiga: “Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem”.
Há que se ressalvar que nem a origem abastada do menino, tampouco o ambiente acolhedor em que cresceu; nem a boa formação, tampouco a sua carreira profissional exitosa impediram que ele turvasse a percepção da esposa, por conta do ciúme. Mais ponderada que ele é Capitu – que apenas em uma situação deixa antever um sinal de descompostura: justamente quando ela se defende da acusação de adultério, manifestada pelo marido. Eis o contraste decisivo: o advogado está obcecado em provar a culpa da esposa; colocada no banco dos réus, Capitu jamais perde a conduta digna e sóbria.
Consideremos provisoriamente o juízo de José Dias sobre o olhar de Capitu – sentença que desde cedo planta a dúvida em Bentinho (e, provavelmente, no leitor desavisado). A certa altura, o rapaz pede para investigar o rosto da namorada: “Tinham-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas”.
Há grande distância entre esse diagnóstico pueril de Bentinho e a malícia da fase adulta, que leva dom Casmurro a condenar a companheira, convocando o leitor como testemunha da peça de acusação:
O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: ‘Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti’. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
Entre a adolescência e a maturidade, o relato de Bento deixa à mostra as habilidades da menina. Capitu dominava a arte de seduzir e conversar. Como ficamos a saber disso? O próprio Bentinho enfatiza o olhar atento, mas também a capacidade de escuta da garota. Um dos saldos da leitura é que Capitu revela inequívoca dignidade, não só nas palavras, mas também nos gestos – o que se percebe desde que ela passara a frequentar mais amiúde a casa dos Santiago. Entre o comedimento e a ousadia (da perspectiva do narrador), ela age de modo ponderado e equilibrado.
Coisa muito diferente sucede com Bentinho, à proporção que (não) amadurece, nem perdoa a suposta traição da esposa. Um dos capítulos mais enxutos do romance (“A Solução”) ilustra bem o que havia de ardiloso na conduta de Bento, separado de Capitu na Suíça:
Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas, como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião.
Muitos anos depois, ainda ressentido com a suposta infidelidade da esposa e do amigo Escobar, Bento reage com frieza e cálculo à visita do próprio filho:
— A pessoa está aí? perguntei ao criado.
— Sim, senhor; ficou esperando.
Não fui logo, logo; fi-lo esperar uns dez ou quinze minutos na sala. Só depois é que me lembrou que cumpria ter certo alvoroço e correr, abraçá-lo, falar-lhe na mãe. A mãe, — creio que ainda não disse que estava morta e enterrada. Estava; lá repousa na velha Suíça. Acabei de vestir-me às pressas. Quando saí do quarto, tomei ares de pai, um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro. Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas, mirando o busto de Massinissa, pintado na parede. Vim cauteloso, e não fiz rumor.
Ora, admitindo que Capitu tivesse a habilidade de calcular falas e gestos, em acordo com as circunstâncias, o que dizer dessa cena ao final do romance, em que Bento revê o filho Ezequiel, já crescido, em visita ao pai após a morte da mãe? Se Capitu era capaz de dissimular o que sentia e pensava, Bento era tão ou mais competente em simular o que convinha, interpretando o papel condizente com cada situação. Soa perversa a declaração de ter tomado “ares de pai”.
Para impor respeito e aumentar a própria importância, ele deixa o rapaz “esperar uns dez ou quinze minutos”. Até mesmo a imprecisão do tempo investido na encenação (“dez ou quinze minutos”) indicia o desafeto e desdém que nutre pelo rapaz.
(*) Por Jean Pierre Chauvin é professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
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