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E se as renas natalinas não dançassem mais?

Por Raíssa Rojas | 18/12/2025 08:30

O Natal, frente a diferentes interesses, tem chegado cada vez mais cedo. Em Campo Grande, na vitrine de uma loja de decoração, em meados de outubro, as bruxas do Halloween e os diferentes Papais Noéis dividiam espaço e a atenção dos consumidores. O fenômeno não ocorre apenas em estabelecimentos comerciais. A cada ano, mais e mais cidades têm investido dinheiro público em enfeites e decorações em ruas e praças, assim como em eventos natalinos. Isso aponta para o quanto o poder afetivorepresentativo desse período tem sido ampliado para além do mês de dezembro e ganhado força entre aqueles que dependem de votos para se manter em posições de poder.

Política e Natal têm diversos atravessamentos. Exemplos, de diferentes lados políticos, não faltam. Nicolás Maduro, presidente nada democrático da Venezuela, desde 2013 antecipa essa festividade para outubro, em meio a uma crise econômica. Segundo ele, é para “defender a felicidade”. Por aqui, a atual prefeita, Adriane Lopes, já levou personagens natalinos para as comemorações do Dia das Crianças, em outubro de 2023. O contexto político local era de críticas à atuação da prefeitura diante das falhas da rede de proteção às crianças e aos adolescentes, vindas à tona no terrível caso do assassinato da garotinha Sophia. Contudo, em 2021, o ex-prefeito Marcos Trad foi o primeiro a se exibir entre animais e personagens com referências ao Polo Norte nas noites quentes de dezembro na Parada de Natal da capital.

Acompanho, como morador e pesquisador, a Parada de Natal de Campo Grande desde a sua origem. As renas são, de longe, os personagens mais queridos e animados da iniciativa da prefeitura. Nas ruas e na internet, nos últimos anos, assistiu-se a mudanças na biografia de gênero e sexualidade da rena que, em 2021, era solteira e não tinha qualquer referência ao seu gênero ou à sua sexualidade divulgada pela prefeitura. Essa biografia mudou aos poucos, ano a ano, com o surgimento de uma fêmea e, posteriormente, de uma cria. Tudo se deu com investimento público, produzindo pedagogicamente, isto é, ludicamente, um currículo cultural de binaridade de gênero e presumida heterossexualidade. Inclusive, em 2022, mesmo em um Estado laico, a prefeitura casou as renas em um ritual com elementos cristãos, diante de uma multidão encantada na “Cidade do Natal”.

A família de renas da prefeitura pode ser identificada como uma marca de governamentalidade, isto é, de gestão e produção de modos de ser, sentir e pensar. Não é por acaso que, na mesma noite do casório, a prefeita e seu esposo — também político —, assim como o Sr. Rena e a Sra. Rena, deram um beijo romântico na boca, posando para fotógrafos oficiais e munícipes emocionados. Em 2023, na já referida comemoração do Dia das Crianças, a prefeitura seguiu produzindo culturalmente gênero e sexualidade ao realizar um “Chá Revelação” do sexo do filhote que ainda não havia nascido. Considerando essa humanização dos bichos, vale destacar: pesquisas em diferentes áreas, apontam que definir fixamente e criar expectativas autoritárias sobre a identificação sexo-gênero antes de qualquer experiência de socialização é contraproducente para o campo dos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Nesse sentido, naturalizar (biologizar) o que é cultural tem sido uma forma de violência de gênero na produção cultural-representacional do Natal pela prefeitura da nossa cidade.

Neste ano, no dia em que a Guarda Municipal, segundo notícias e vídeos que circularam pelas redes sociais, agrediu munícipes que protestavam pacificamente reivindicando seus direitos, as renas e os demais personagens não desfilaram — contrariando as expectativas de boa parte do público presente. Tudo foi diferente dias depois, quando, animados, os profissionais da cultura colocaram o desfile para acontecer na popular Rua 14 de Julho, sem a presença marcante da prefeita. Em meio a fotos, sorrisos e gritos de alegria de diversas crianças e adultos, ouvi: “Está menor do que a do ano passado”. Nas redes sociais — não nas páginas oficiais da prefeitura, onde costumam aparecer apenas apoio e elogios —, li: “Tiraram o emprego dos músicos”. A crítica referia-se à ausência da banda que fazia parte do desfile nos anos anteriores.

Em 2021, o sucesso e a identificação do público com a rena sem gênero e sem sexualidade se deram porque ela, ao som da banda, dançava funk. A família de renas, hoje, dança ao som de uma gravação em um carro de som, no clima de “música gospel” — como se referiu outro comentário crítico ouvido na rua durante a Parada de Natal. As mudanças na biografia sexual e nas performances de gênero desses bichos-personagens públicos dizem muito sobre a política local: de funk para a “música gospel”, de não binária para cisgênera e heterossexual. Mas, e se as renas não dançassem mais? Podemos pensar que, em termos de produção das diferenças, não haveria problema algum, pois faz parte de diferentes governos, locais ou nacionais, fazer com que hierarquias e naturalizações sejam usadas em prol de sua popularização, ainda mais em tempos difíceis.

(*) Tiago Duque é doutor em Sociologia e professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

 

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