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Cidades

ONG que ‘reconstrói’ favela deixou assentados sem teto em 2013

Entidade é investigada por abandono da obra no assentamento Vale do Sol

Anahi Zurutuza | 07/07/2016 08:55
O agricultor Miguel Nogueira diz que ainda tem esperança de se mudar para a casa nova (Foto: Alcides Neto)
O agricultor Miguel Nogueira diz que ainda tem esperança de se mudar para a casa nova (Foto: Alcides Neto)

As famílias eram sem-terra. Em 2008, conquistaram um lote na área rural de Campo Grande por meio de programa de reforma agrária, mas parte do que era sonho se tornou pesadelo em 2013, quando “ficaram sem teto”.

Em 2012, a Morhar Organização Social, mesma responsável pela obra das 314 moradias destinadas aos removidos da favela Cidade de Deus, começou a construção de 42 casas no assentamento Vale do Sol, que fica a 20 km do perímetro urbano da Capital. Mas, no ano seguinte, os responsáveis pela empreita e pedreiros desapareceram.

O material comprado para a construção foi deixado parte em um depósito trancado e parte dentro dos imóveis que já tinham ao menos paredes e telhado. Mas, a tão sonhada casa, com 46 metros quadrados divididos em dois quartos, banheiro, sala e cozinha, só virou realidade para três famílias.

De lá para cá, alguns terminaram a obra por conta própria, mas os que não têm condições financeiras tiveram de se contentar com os cômodos que haviam construído antes da ONG (Organização Não-governamental) chegar prometendo a casa de alvenaria, forrada, com piso e acabamento de primeira.

“No começo, o pessoal era ‘nota mil’, mas depois de um tempo começaram a não vir mais e sumiram”, conta Miguel Carlos Nogueira, 65, que vive no assentamento com a mulher Maria, 60. O casal tira o sustento da plantação de mandioca, vendida descascada na cidade.

“Mas a gente ainda tem esperança”, completa o agricultor, apesar da indignação de ter de continuar na casa de 24 metros quadrados construída no improviso logo que tomaram posse do lote.

Das 42 prometidas pela Morhar, 31 foram deixadas sem acabamento (Foto: Alcides Neto)
Das 42 prometidas pela Morhar, 31 foram deixadas sem acabamento (Foto: Alcides Neto)

Ivanir Ribeiro da Silva, 76, que mora com o neto Bruno Henrique em um dos lotes do Vale do Sol também ficou na mão. A casa deles foi deixada sem forro, sem instalação elétrica, torneiras e vaso sanitário. Mas, há um ano e meio, eles decidiram ocupar o imóvel.

“Deixaram toda pelada. Meu neto arrumou para a gente poder vir para cá”, relatou. As janelas, sem o vidro, foram cobertas com lona, a parte elétrica improvisada, mas para usar o banheiro a idosa e o neto precisam atravessar até o cômodo onde viviam antes.

Casa de Maria de Fátima ficou só no alicerce (Foto: Alcides Neto)
Casa de Maria de Fátima ficou só no alicerce (Foto: Alcides Neto)

Revolta – A casa que começou a ser construída no lote de Maria de Fátima ficou só no alicerce. Para ela, que vive no assentamento com o marido, dois filhos, de 10 e 16 anos, e o pai, que se tornou cadeirante depois de três AVCs (Acidentes Vasculares Cerebrais), o sentimento é de revolta. “É o nosso dinheiro jogado fora”, afirma sobre o fato das obras paralisadas estarem estragando com o passar do tempo.

Maria de Fátima e a família também vivem da plantação de mandioca e não têm dinheiro nem para reformar a casa antiga, cheia de buracos nas paredes. “Na época, eu queria que eles reformassem a minha casa, mas disseram que em dois anos ela ia cair. Estamos aqui até hoje. Se tivessem nos dado o material, a gente fazia um mutirão e terminava isso aqui”, destacou.

Os filhos de Geneci Fátima Zanini terminaram a casa dela por conta própria. “Só que a gente juntou cada nota e vamos cobrar da Morhar na Justiça”, afirma Giuceu Zanini, 42, que em 2014 foi à Caixa Econômica Federal e ao MPF (Ministério Público Federal) denunciar a ONG.

Filhos de Geneci terminaram a obra da casa dela, mas vão pedir ressarcimento (Foto: Alcides Neto)
Filhos de Geneci terminaram a obra da casa dela, mas vão pedir ressarcimento (Foto: Alcides Neto)

“Cada tijolo desta parede é uma gota do nosso suor”, completou Geneci, sobre “não deixar barato”, apesar de ter terminado a obra.

De acordo com a presidente do assentamento Vilma da Silva, 40, das 42 casas, três foram terminadas pela Morhar, 31 ficaram sem acabamento e oito só no alicerce. Ela também são recebeu a moradia.

Alguns assentados “beneficiados” com a construção da casa popular receberam a cobrança e pagaram a primeira parcela, de R$ 285, do valor cobrado pela casa. O primeiro boleto foi entregue em 2014. No ano passado e neste ano, nem a fatura chegou.

Assentados denunciaram 'maquiagem' para fotos (Foto: Alcides Neto)
Assentados denunciaram 'maquiagem' para fotos (Foto: Alcides Neto)

‘Maquiagem’ – Ainda em 2013, por algumas vezes, segundo moradores, a equipe da ONG foi ao assentamento para fazer fotos das construções.

Em quase todas as casas, 15 lâminas de forro de madeira, com cerca de 40 centímetros de comprimento, foram instaladas apenas nos beirais dos telhados para as imagens.

Projeto x Valores – Cada moradia foi projetada com 46 metros quadrados, exatamente a mesma medida das casas erguidas no loteamento Vespasiano Martins – na região sul da Capital –, inauguradas pelo prefeito Alcides Bernal (PP) na sexta-feira (1º).

A diferença está nos valores. Os imóveis do assentamento Vale do Sol custariam R$ 28,5 mil cada, conforme o contrato assinado pelas famílias em 2012. Já as casas construídas para moradores da favela estão orçada em R$ 12 mil.

No loteamento urbano, contudo, os imóveis foram erguidos pelas mãos dos próprios moradores, por meio de um “mutirão assistido” e entregues sem o acabamento interno.

A obra no Vale do Sol custaria, em tese, R$ 1.197.000,00. Para executar os trabalhos no Vespasiano Martins, comprar o material e acompanhar as obras em outros três loteamentos, montados pela prefeitura para remover famílias da Cidade de Deus, a Morhar recebeu da administração municipal R$ 3,6 milhões, conforme publicado em Diário Oficial.

Investigação – A denúncia feita por Giuceu resultou na abertura de inquérito pelo MPF.

A Procuradoria da República em Mato Grosso do Sul apura eventuais irregularidades na execução do Programa Nacional de Habitação Rural, integrante do Programa Federal “Minha Casa, Minha Vida”, em convênio firmado entre a Agehab (Agência Habitacional Popular) e a Morhar. O MPF não deu retorno sobre o andamento da investigação.

Nesta quarta-feira (6), a reportagem entrou em contato por duas vezes com Rodrigo da Silva Lopes, que assina o convênio com a prefeitura e seria o atual presidente da Morhar. Ele informou que se manifestaria apenas por e-mail, mas não enviou a nota até o fechamento da matéria.

Confira mais imagens na galeria (Fotos: Alcides Neto)

Confira a galeria de imagens:

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