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Arquitetura

Francisca transformou dor em primaveras e venceu o câncer em casa "esquecida"

Cidade cresceu em volta, mas lar onde ela criou os filhos permanece guardiã de memórias

Kimberly Teodoro | 03/06/2019 08:56
Cidade cresceu em volta, mas casa onde Francisca transformou luto em flores e se curou de câncer permanece guardiã de memórias.(Foto: Henrique Kawaminami)
Cidade cresceu em volta, mas casa onde Francisca transformou luto em flores e se curou de câncer permanece guardiã de memórias.(Foto: Henrique Kawaminami)

Esquecida pela cidade que cresce em volta, a casa onde Francisca transformou luto por três filhos em flores e se curou de câncer permanece forte na Rua Antônio Maria Coelho. Guardiã de memórias, ainda ocupam os retratos nas paredes e os móveis marcados pelo uso, aos poucos afastadas da mente da moradora pela sombra do Alzheimer.

A construção não é nova, o terreno que se estende e diagonal por mais da metade da quadra fica há quase um metro do nível da rua, como se houvesse sido cercada pelo avanço do tempo. Ainda vistosas, as primaveras brancas e cor-de-rosa são uma das poucas coisas a denunciar a passagem de moradores pelo local, em uma quadra onde a maioria das casas já foi ocupada pelo comércio.

Depois de transpor o portão branco, outros seis degraus separam o portão do jardim. Como um lembrete da idade, da casa e da última ocupante hoje com 95 anos, uma barra de ferro transformada em corrimão improvisado oferece apoio a quem entre e quem sai.

Francisca em meio as primaveras que cultivou ao longo da vida (Foto: Arquivo Pessoal)
Francisca em meio as primaveras que cultivou ao longo da vida (Foto: Arquivo Pessoal)

Quase tão antiga quanto a própria região, a casa já estava lá em 1972, quando Francisca Miranda Ribeiro, a “Chiquita” e o marido, João Batista Ribeiro, se mudaram. Entre as muitas tentativas da equipe de reportagem, é a primeira vez que a porta de madeira da tímida casinha branca está aberta, mas não é a sala para qual ela se abre que conta esta história. O que chama a atenção são as plantas, tantas que tomam conta do jardim, do corredor lateral, coberto de verde e que leva aos fundos, onde o pé de amora e as orquídeas dão as boas vindas ao visitante. Ali, a casa tem vida, cheiros e cores que se estendem à frente e à cima, como se a cidade houvesse ficado para trás.

Entre idas e vindas, “Chiquita” como prefere ser chamada, está ausente desde outubro, quando foi ver o filho em São Paulo. Ao fazer as malas, não imaginou o alzheimer que traria despedida do lar que “viu” os quatro filhos virarem homens e enfrentou a partida de três deles, além da viuvez.

O caçula partiu ainda “moço”, aos 20 anos e sem aviso depois de um acidente de carro. Doente, o segundo filho foi levado pela Aids. O terceiro, mais apegado à mãe por morar mais perto se despediu quando o coração parou, levando junto um pedacinho do de Francisca, que no mesmo ano teve câncer de mama.

“Um câncer emocional, depois de todas as dores que ela guardou para si”, explica a neta, Valkíria Miyahira, que é quem cuida da avó e narra a história, que no dia da visita do Lado B acabou perdida na mente da anciã.

Mesmo diante da dor, Valkíria afirma que o segredo da avó foi não se entregar. “Nunca vi a minha avó ficar revoltada, ela nunca culpou a Deus ou a vida. Nunca perdeu a esperança, nem a fé. Ela sempre acreditou que as coisas aconteciam por um motivo, que as perdas também são parte da vida”.

Francisca e os quatro filhos, foto que carrega sempre junto de si (Foto: Kimberly Teodoro)
Francisca e os quatro filhos, foto que carrega sempre junto de si (Foto: Kimberly Teodoro)
Fotos ainda enfeitam a casa, contando a história de quem já viveu sob aquele teto (Foto: Henrique Kawaminami)
Fotos ainda enfeitam a casa, contando a história de quem já viveu sob aquele teto (Foto: Henrique Kawaminami)
"Engolida" pela cidade, casa é refúgio onde Francisca criou raízes (Foto: Henrique Kawaminami)
"Engolida" pela cidade, casa é refúgio onde Francisca criou raízes (Foto: Henrique Kawaminami)
Cercada pelo verde, a casinha branca parece deixar a cidade para trás (Foto: Henrique Kawaminami)
Cercada pelo verde, a casinha branca parece deixar a cidade para trás (Foto: Henrique Kawaminami)

A memória afetiva ainda é muito forte, desde uma música no rádio até a comida favorita de outros tempos. “É momentâneo, em alguns dias ela se lembra de tudo e em outros as lembranças passam”, relata Valkíria, que acompanhou desde o início a mudança no comportamento da avó que durante os primeiros sintomas “de uma pessoa doce passou a ser agressiva, responder, xingar e ter alucinações, não lembrava da gente ou confundia os nomes. Não era a minha avó”.

Cada dia sob os cuidados da neta é um pequeno progresso, a medicação adequada trazem de volta o bom humor e afasta as sombras do Alzheimer. Durante a conversa, Francisca disse pouco sobre si, mas mostrava sorrisos de quem na própria memória voltou a ser jovem e até pedir música: a polca paraguaia “Mercedita, porque eu gosto muito e me faz muito bem”, ri.

A música lembra os tempos de alegria, em que a casa era cheia com a presença dos filhos, nos bailes que reverenciavam parte da cultura do marido, descendente de paraguaios e que, certamente conquistou com ritmo e passos bem ensaiados o coração de uma “Chiquita” mais jovem e que adorava dançar.

“Quando era adolescente, ela fugia para dançar nos bailes. Deixava a mãe muito brava, chegou até a namorar um cigano com quem quase se casou lá em Rio Verde, cidade onde ela nasceu”, conta a neta.

Ao contrário do que parece, Valkíria não foi criada “em casa de vó”, a aproximação só veio depois da morte do pai. “Era ele quem sempre estava com ela, ia visitar todos os dias e cuidar das necessidades que ela tivesse”, conta. A dor aproximou as duas, levando a neta a assumir as responsabilidades que antes eram do filho, mas feitas apenas por precaução, é claro, já que até outubro do ano passado, Francisca era uma senhora independente e bem disposta.

Alzheimer trouxe a despedida da casa, mas não apagou a força com que Francisca encara a vida (Foto: Kimberly Teodoro)
Alzheimer trouxe a despedida da casa, mas não apagou a força com que Francisca encara a vida (Foto: Kimberly Teodoro)

Desde limpeza da casa, o cultivo do jardim ao qual ela se dedicava no começo da manhã e aos fins de tarde, até as compras no supermercado e as idas fiéis à igreja. Aos destinos mais distantes, Francisca sabia pedir táxi e ir sozinha. Durante as visitas da neta, havia sempre café na hora e servido na bandeja, sempre na xícara de café, nunca no copo.

Foram muitas as tentativas de Valkíria em levar a avó para morar com ela depois do câncer. “Ela fugia, dizendo que ia passar um ou dois dias em casa e não voltava porque ela ama aquela casa”, conta a neta. Nos melhores dias, Francisca ainda pergunta pela casa e fala das primaveras, sente saudade, mas sabe que não consegue mais morar sozinha. “Lá tem muitas escadas”, é a resposta conformada de quem entende não poder voltar.

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