Aos 61 anos, Renê achou liberdade após décadas de busca por si mesma
Depois de uma vida inteira se adequando pela família, amigos e sociedade, Renê decidiu ser quem sempre foi
Por muito tempo, Renê se chamou Regina Célia, nome que não tem problema em dizer. Hoje, aos 61 anos, ela vive o que talvez seja a fase mais verdadeira da própria vida. Entre o passado, a resistência, a dor e o renascimento, há a certeza de que é preciso coragem para se olhar no espelho e, enfim, se reconhecer.
Com tatuagens cheias de personalidade, batom escuro na boca e cabelo de puro estilo, Renê Passos fala de si mesmo com naturalidade e poesia. “Eu nasci Regina Célia, mas sempre fui mais moleque. Gostava de bonecas, de enfeites, mas minha expressão era mais forte, mais masculina. Transito entre o universo masculino e feminino e isso sempre ficou evidente”, relembra.
Hoje, Renê é mais que um nome, é uma conquista de uma retificação que veio há dois anos, após tentativas frustradas e muita espera para, de fato, se entender e se libertar. “Consegui minha identidade social como Renê Passos. E é assim que me apresento”, conta.
Mas, quem vê a pessoa cheia de personalidade e estilo, não imagina que nem sempre as coisas foram bem resolvidas assim. Durante décadas, Renê viveu entre o que esperavam dela e não o que de fato sentia. Tentou se moldar, se encaixar em padrões impostos pela família, pela sociedade, pelo trabalho.
“Grande parte da vida eu tentei ser o que meu pai queria. Ele era policial e sempre esperou algo de mim que não me cabia. Mas eu fui seguindo. Fiz administração, tenho mestrado, sou advogada, fui professora universitária e consultora empresarial por 22 anos", detalha.
No currículo, sobram títulos. No coração, sempre pairou a busca pelo direito de ser. “Eu me sentia triste por dentro. Vivia me moldando conforme o lugar, não podia me vestir como eu queria. Com amigos, era uma. Em casa, outra. No trabalho, mais uma versão. Mas, por dentro, a alma gritava”, explica.

Aos poucos, esse grito virou doença. Adoeceu física e emocionalmente. “Trabalhava em cargos altos, era chefe de gabinete na Prefeitura, participava de grupos de trabalho e saía de casa antes das 7h e voltava depois das 21h. Chegou um ponto em que o corpo falou: ‘Ou você muda, ou você morre'", relembra.
Foi em 2022, em meio ao esgotamento físico, depressão e diagnóstico de Parkinson, que veio a virada. “Percebi que estava em um buraco, mas eu vi uma luz e uma escada. Entendi que podia subir, mesmo devagar”, conta.
Essa escada era feita de degraus internos, que Renê começou a subir em busca de autoestima. “Conversei com minha criança ferida, entendi que ela era linda do jeito que era. E assim segui”, acrescenta.
Ao lado da filha, Mikka, que é autista, mulher trans e também enfrenta uma jornada intensa, Renê encontrou ainda mais força. “Não posso repetir com ela o que fizeram comigo. Quando ela disse que era mulher, eu abracei. Disse que ela é perfeita do jeito que é”, relata.
Quando as duas assumiram a verdadeira identidade que as definia, muitos familiares e amigos se afastaram. "Muita gente se distanciou, deixou de nos procurar. Ficaram trêsa amigos da época o trabalho na Prefeitura e a Luzia, prima do meu pai, que hoje tem 92 anos e é uma fonte de inspiração pra nós", aponta.
Lado a lado, mãe e filha enfrentaram o preconceito e lutam diariamente pelo direito de serem quem são. “Conseguimos mudar o nome dela. Lutamos, vencemos e isso me deu ainda mais coragem”, avalia.
Renê sabe que seu caminho é único. “Não sou homem, nem mulher. Eu sou eu. Um ser com aspecto forte masculino e também feminino. Gosto do preto, dos animais, da arte. Sou pagão, ocultista. E, acima de tudo, livre”, avalia.
Hoje, prefere não explicar mais sua existência para os outros. “Se eu precisasse agradar o tio, a tia e a sociedade, estaria negando a mim mesmo. Eu quero ser lembrada pelo legado, não pelos rótulos”, afirma.
A história de Renê é sobre libertação. É sobre a coragem de tirar as máscaras, mesmo depois de 60 anos. “Hoje eu me vejo, eu me aceito e isso é o que importa”, finaliza.
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