Em 700 júris, promotor já desmaiou e quebrou 3 óculos em plenário
Sem medo do que vão pensar, Douglas diz que sua missão é “acusar sem humilhar”
Quando é mais fácil manter a pose, Douglas Oldegardo Cavalheiro dos Santos é promotor que não tem vergonha de se expor, mesmo que isso soe como performance no tribunal. Dos mais de 700 júris da carreira, ele já se emocionou, quebrou três óculos e até desmaiou em julgamento. Aos 44 anos, Douglas fala como é ser do tipo "figura" em uma esfera onde muitos tentam manter as aparências ou sustentar aquela arrogância típica de quem se acha o “dono da verdade” por ser “do Direito”.
Douglas é conhecido pela atuação na área criminal e, normalmente, é visto bravo, apontando o dedo para algum acusado dentro do Tribunal do Júri, em Campo Grande. Mas em seu gabinete o tom de voz muda. Parece calmo, fala baixinho e não desvia os olhos. Além disso, abre um sorriso largo para dizer que é músico do Grupo Acaba, um dos mais tradicionais e característicos de Mato Grosso do Sul. Também lembra com bom humor da paixão pela fotografia, que já lhe garantiu título de “promotor sisudo” por aqui.
Ainda que a música e a fotografia acordem Douglas de toda tensão que um julgamento carrega, ele sustenta que a promotoria é que o fascina. Já são 20 anos dentro do Ministério Público de Mato Grosso do Sul e muitas histórias para contar, especialmente, quando veste a beca.
De olhares emocionados a fortes ataques, o resultado de um júri nunca agrada todos os lados da história. O promotor sabe que a insatisfação é normal, por isso, lida bem com a desaprovação de quem sai do plenário infeliz com o resultado. Mas ele diz que não coloca ninguém “como inimigo”. “Existem membros que entendem por bem que a melhor estratégia acusatória é uma acusação aguda voltado para o réu, através de um ataque frontal, o personificando como inimigo da sociedade. Eu tenho outro viés, particularmente não gosto de usar o réu na minha linha acusatória, e sim o seu ato ou comportamento” diz.
O motivo é sempre o mesmo: “Acusar sem humilhar”, afirma. “Ter passado por isso mais de 700 vezes sem nunca ter humilhado um ser humano é uma satisfação”.
Em algumas situações, Douglas diz que voltou para casa com lágrimas nos olhos ao ganhar admiração do próprio condenado. “Eu já tive três situações em que os réus foram condenados e, após a sentença, quando a escolta foi tirar cada um do plenário, ele saiu sem nenhum ar de hostilidade e me agradeceu por não o ter humilhado”, conta.
Eventualmente as pessoas não tem toda essa sensibilidade. “As pessoas acham a acusação injusta”, lembra o promotor que já chegou a ser chamado de “satanás” e “belzebu”. “Isso me fere profundamente porque eu tenho muito respeito pelo acusado em qualquer processo”, desabafa.
Em 1997, Douglas fez seu primeiro júri. A vaidade veio com a sensação de vitória ao obter condenação nos primeiros 14 julgamentos. Hoje, ele diz que essa percepção mudou. Jura que não se sente vaidoso por garantir que alguém escape ou vá para cadeia. “Hoje eu tenho dificuldade de entender quando alguém me pergunta ‘quem ganhou?’”, diz.“Eu não consigo encaixar no meu raciocínio a ideia de vencer no júri. O resultado de um júri não é uma vitória. É uma decisão social, não existe quem quer ganhar ou perder, é justiça apenas. Tenho muita consciência disso”, completa.
De todos os promotores que entram no plenário, Douglas se considera o “mais prolixo”. Ele afirma que seu tempo médio de fala é de 96 minutos. Na prática, ele tem o mesmo espaço que o advogado de defesa: questiona o réu, as testemunhas e tem duas horas para convencer o júri de que o réu é culpado. Se ele entender necessário poderá fazer uso da réplica. Usar 100% desse tempo para alguns até pode soar como maçante, mas Douglas não está nem aí.
“Eu trato o pedido de absolvição da mesma forma como eu trato um pedido de condenação. Então, as vezes me demoro mais ainda. Fico imaginando que é a sociedade que está ali. Eu tenho que dar uma satisfação aquelas pessoas. Não posso falar durante 10 minutinhos só para todo mundo dizer ‘joia’ e ir para casa mais cedo. Não é assim que funciona. E eu não consigo tratar a justiça com essa simplicidade”, afirma.
O processo é todo sustentado por indícios, mas no plenário, se perceber que todas as informações não são suficientes para a condenação, ele diz que não tem receios de virar o jogo, mesmo que isso também cause revolta na plateia. “Eu não tenho o menor constrangimento de mudar tudo no plenário e dizer que não é possível condenar. Isso já aconteceu muitas vezes. Só peço a condenação do réu se a minha convicção absoluta for que de que o réu é culpado”, afirma.
O tempo de fala, a facilidade para virar o jogo e os momentos de indignação marcam a figura do promotor que não mantém a pose, principalmente, nos casos que trazem relatos de crueldade. Por isso, óculos acabaram quebrados durante julgamentos. “Há momentos em que a indignação é muito forte. A crueldade dói na alma”.
O que você leva para o júri? - A principal pergunta dos acadêmicos de Direito também é respondida na entrevista. “Todo mundo quer saber qual doutrina eu levo para o tribunal”, diz Douglas que não se opõe em revelar que a Bíblia é um dos principais instrumentos que o acompanha em um processo. “Eu levo uma Bíblia em 100% dos casos, um livro de Filosofia em 80% dos casos e um livro que estou lendo no momento, que pode ser uma biografia, livros de neurolinguística ou matemática”. Segundo ele, os livros ajudam a explicar de maneira entendível a razão para o réu cometer determinados atos.
Douglas se debruça nas lembranças de julgamentos que marcaram a carreira, como o julgamento histórico da clínica com centenas de registros de abortos ilegais, ou o caso do menino “Dudu” de nove anos, cujo corpo nunca foi encontrado, apenas pedaços de ossos. Também não é capaz de esquecer o assassinato da prostituta morta a pedradas, na véspera do Dia das Mães. “Cujo caixão o filho de seis anos deixou uma carta que havia escrito para lhe entregar no dia seguinte”, lembra. Além do assassinato da mulher usuária de drogas que devia R$ 15,00 ao traficante e, por não conseguir pagar, morreu com mais de 30 facadas, e que em seu julgamento não havia um parente para saber do resultado.
“O que acontece no júri você não leva para casa, mas para dentro de si. Nunca sou a mesma pessoa após um julgamento. Hoje, eu tenho 44 anos, mas eu tenho muitas diferenças de quando eu ainda estava na faculdade de Direito. Lembro que pagava a faculdade tocando em clubes de laço e achava aquilo a coisa mais linda. Hoje, eu tenho horror a laçada, sou ativista da causa ambiental assim como defendo o ser humano”.
Se precisasse nadar na mesma direção da correnteza, onde muitos se tornam insensíveis e indiferentes com os que sofrem, com os que não possuem melhores condições de vida, e que acabam marginalizados, Douglas diz que as horas dentro do plenário não fariam sentido. “Eu luto por justiça, eu luto pela vítima, seja ela um milionário ou uma moça drogada invisível aos olhos da sociedade. Essa é a minha corrente”, conclui.