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Entre a ciência e o preconceito

A participação de mulheres trans em esportes olímpicos

Por Gabrielle Weber (*) | 01/07/2024 13:30

No mês do orgulho LGBTQIAP+ e às vésperas do início dos jogos olímpicos de Paris, o debate sobre a participação de mulheres trans em competições esportivas na categoria feminina foi reacendido com uma decisão polêmica da Corte Arbitral do Esporte (CAS), a instância mundial suprema para questões de justiça desportiva. Como consequência, a nadadora transgênero estadunidense Lia Thomas não poderá participar da seletiva olímpica dos Estados Unidos.

Lia Thomas foi a primeira mulher trans a conquistar um título nacional da primeira divisão da liga universitária americana, a National Collegiate Athletic Association (NCAA), ao ganhar a prova de 500 jardas livres no campeonato da NCAA de 2022. Em janeiro de 2024, ela havia entrado com um recurso contra as regras estabelecidas pela World Aquatics (WA, anteriormente conhecida como Federação Internacional de Natação) para a participação de atletas transgênero e intersexo nas categorias femininas e masculinas em esportes aquáticos. Em sua argumentação, as regras adotadas pela federação deveriam ser consideradas inválidas e ilegais, já que eram de caráter discriminatório e contrárias à Carta Olímpica, à constituição da WA e à lei suíça (país sede da CAS), incluindo a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres.

De acordo com a política de (des)inclusão da WA, introduzida em junho de 2022, atletas trans ou intersexo só podem participar de competições da WA na categoria feminina, se elas satisfizerem uma das seguintes condições: serem completamente insensíveis a andrógenos e, por isso, não terem passado pela puberdade masculina; terem sido submetidas à supressão da puberdade antes dos 12 anos ou antes do início do chamado estágio puberal Tanner 2. Nenhuma das quais é atendida por Lia, uma mulher trans endossexo que iniciou a sua transição hormonal em maio de 2019, aos 20 anos.

De fato, a segunda condição é praticamente impossível de ser satisfeita, dado o estado legal em que se encontra o uso de medicamentos para a supressão da puberdade em crianças e adolescentes trans. Apesar das evidências científicas e de seu uso ser endossado por diversas associações médicas, incluindo a Associação Mundial para a Saúde Transgênero, a World Professional Association for Transgender Health (WPATH) e a Sociedade Endócrina (Endocrine Society), trata-se de um tema que tem sido alvo de muita desinformação e diversas legislações anti-trans, desde o notório caso Bell v. Tavistock, no Reino Unido em 2019. Atualmente, a prescrição de bloqueadores de puberdade encontra-se banida ou alvo de severas restrições no Reino Unido e em pelo menos 24 estados dos Estados Unidos. No Brasil, embora a Resolução do Conselho Federal de Medicina no 2.265/2019 permita o seu uso em crianças e adolescentes trans a partir do estágio puberal Tanner 2, tramitam projetos de lei, como o proposto pela CPI – Tratamento para Transição de Gênero em Crianças e Adolescentes no HC-São Paulo à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, com o intuito de proibir a sua utilização em crianças e adolescentes menores de 16 anos.

A discussão sobre a verificação do sexo com o intuito de garantir uma pretensa justiça na categoria feminina de competições esportivas não é nova. Remonta pelo menos à década de 1940, com a emissão dos chamados “certificados de feminilidade” por parte de médicos. Na década de 1960, passaram a ser empregadas invasivas inspeções visuais da genitália para a confirmação do gênero da atleta, eventualmente, suplantadas por testes que permitissem verificar características biológicas endógenas que, a priori, deveriam determinar biunivocamente o sexo da pessoa, como os cromossomos e, posteriormente, os níveis de testosterona. Em alguns casos extremos, essas políticas levaram as atletas a serem submetidas a cirurgias desnecessárias, como mutilação genital feminina e a esterilização.

Ao longo das últimas duas décadas, com o imbricamento da questão trans, borrando cada vez mais as definições artificiais empregadas para estabelecer quem pode ser considerada mulher para fins esportivos, o Comitê Olímpico Internacional (COI) se viu forçado a atualizar gradativamente os seus critérios de exclusão. Inicialmente, em 2003, apenas mulheres trans redesignadas há pelo menos dois anos e cuja identidade fosse legalmente reconhecida por autoridades competentes poderiam competir na categoria feminina. Posteriormente, em 2015, as exigências legais e cirúrgicas foram aliviadas, bastando que elas se autodeclarassem mulheres e demonstrassem que seus níveis séricos de testosterona estivessem abaixo de 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da competição. Para efeitos de comparação, o nível de testosterona normal em homens cisgênero adultos varia entre 10 e 35 nmol/L, enquanto que para mulheres cisgênero adultas, entre 0,5 e 2,4 nmol/L. Finalmente, em novembro de 2021, o COI estabeleceu novas recomendações sobre justiça, inclusão e não discriminação com base na identidade de gênero e nas variações sexuais com o intuito de orientar as federações internacionais no desenvolvimento de critérios de elegibilidade que refletissem as especificidades de seus esportes, mas que, ao mesmo tempo, incluíssem atletas trans e com variação das características sexuais. Assim, cabe a cada federação esportiva estabelecer as suas próprias exigências.

É exatamente dessa brecha que a WA e outras federações, como a World Athletics (anteriormente conhecida como Associação Internacional de Federações de Atletismo), a World Rugby (anteriormente conhecida como Conselho Internacional de Rugby) e o Conselho Mundial de Boxe aproveitaram para banir toda e qualquer pessoa transfeminina que tenha passado pela puberdade masculina de participar na categoria feminina. A justificativa não mais se baseia apenas em manter uma pressuposta justiça e igualdade nas competições da categoria feminina, mas também invoca um pretenso maior risco de lesão que mulheres cis que competissem contra mulheres trans estariam correndo. Tais federações argumentam que a redução dos níveis séricos de testosterona não seria suficiente para mitigar as pressupostas vantagens físicas que ter passado por uma puberdade masculina conferiria às atletas trans. Além disso, especificamente no contexto do boxe e do rugby, a musculatura e estrutura óssea desenvolvidas durante a puberdade masculina, ao supostamente proporcionarem uma força e rapidez superior para as mulheres trans, colocaria as mulheres cis em risco elevado de graves lesões físicas.

Mas, será que essas restrições à participação de mulheres trans estão realmente baseadas em resultados científicos robustos como demandam as recomendações do COI? Em 2022, o Centro de Ética no Esporte do Canadá (Canadian Centre for Ethics in Sport – CCES) publicou uma revisão abrangente de toda a literatura científica produzida em língua inglesa, entre 2011 e 2021, sobre a participação de mulheres trans em competições esportivas de alto desempenho. Sua primeira conclusão é no mínimo preocupante: os resultados biológicos, que fundamentam muitas das decisões das federações esportivas, são limitados, enviesados e baseados, geralmente, em amostras pequenas, que, muitas vezes, contemplam apenas pessoas sedentárias ou que não são atletas. Além disso, apresentam falhas metodológicas como, por exemplo, não ajustar adequadamente fatores como altura ou massa corporal magra.

Mesmo assim, as evidências disponíveis permitem concluir que a supressão da testosterona nas mulheres trans tem impacto significativo nos indicadores de desempenho estudados. Primeiramente, os níveis de hemoglobina decaem rapidamente, atingindo os valores típicos de mulheres cis em cerca de quatro meses depois do início da supressão da testosterona, sugerindo uma drástica diminuição da performance atlética, principalmente em esportes que exigem resistência. Além disso, as mulheres trans apresentam uma perda significativa de massa corporal magra, da área de seção transversal muscular e de força depois de 12 meses de supressão da testosterona. Ao ajustar pela altura, taxa de gordura corporal, massa corporal magra, área de seção transversal muscular e força, mulheres trans ainda mantiveram, após 12 meses de supressão da testosterona, níveis estatisticamente mais elevados do que mulheres cis sedentárias. Contudo, essa diferença continua perfeitamente compatível com a distribuição normal de massa corporal magra e força de mulheres cis. Portanto, do ponto de vista biomédico, a revisão é categórica em afirmar que mulheres trans que foram submetidas à supressão de testosterona não possuem vantagens sobre mulheres cis.

Entretanto, essas evidências não contradizem o argumento invocado pela World Aquatics, World Athletics, World Rugby e pelo Conselho Mundial de Boxe, que se sustenta predominantemente na hipótese de que mulheres trans se beneficiariam de uma série de vantagens competitivas por terem sido submetidas a uma alta concentração de testosterona durante a puberdade masculina. Vantagens essas que não poderiam ser mitigadas pela supressão da testosterona ou alcançadas naturalmente por competidoras cisgênero. Com o intuito de investigar se mulheres trans, de fato, desfrutam de tais pretensas vantagens, em conformidade com suas recomendações, o COI financiou um estudo publicado em abril de 2024 no Jornal Britânico de Medicina Esportiva. Para tanto, o time de cientistas liderado por Yannis Pitsiladis comparou a aptidão cardiorrespiratória, a força e a composição corporal de atletas transgênero com suas contrapartes cisgênero. Participaram do estudo 19 homens cisgênero, 12 homens transgênero, 23 mulheres transgênero e 21 mulheres cisgênero.

Os resultados não apenas falseiam a afirmação popularmente aceita de que mulheres trans teriam vantagens competitivas perante mulheres cis, como as contradizem. De fato, a capacidade pulmonar de mulheres trans é menor do que a de mulheres cis, aumentando comparativamente o seu trabalho respiratório. Apesar de mulheres cis e trans possuírem capacidades aeróbicas máximas (VO2) comparáveis, quando normalizadas pela massa corporal, verifica-se que a aptidão cardiovascular das mulheres trans é inferior à das mulheres cis. Já com respeito aos indicadores de força muscular, mulheres trans também apresentam uma capacidade de salto menor do que mulheres cis, indicando que mulheres trans têm menor potência anaeróbica corporal. O único critério avaliado em que mulheres trans tiveram uma performance superior a das mulheres cis, foi no teste de força de preensão manual, cujos resultados são comparáveis com o de homens cis. Contudo, ao se normalizar o resultado com respeito ao tamanho da mão, notou-se que não existem diferenças significativas entre nenhum dos grupos avaliados, em consonância com a noção de que maiores mãos possuem maiores forças de preensão. Portanto, ao contrário do que é popularmente alardeado, mulheres trans competem, pelo menos do ponto de vista biomédico, em desvantagem com mulheres cis.

Dessa forma, é possível afirmar que as mulheres trans têm sido injustamente perseguidas no mundo do esportivo, já que os argumentos contra a sua participação não sobrevivem ao escrutínio científico. Contudo, não apenas as confederações esportivas têm se utilizado dessa retórica falaciosa para promover uma descarada agenda anti-trans. Junte-se, em uma sociedade binária e descaradamente cisnormativa, à constatação aparentemente óbvia de que homens são melhores atletas do que mulheres, com o mito de que mulheres trans não são mulheres de verdade, para que se conclua erroneamente que homens mal-sucedidos em suas categorias estão invadindo o esporte feminino para obter vitórias que jamais conseguiriam entre seus pares. O resultado é um pânico moral que tem ganho o debate político e parte significativa da opinião pública, fomentando a completa exclusão de atletas trans nos esportes com a proposição de uma série de projetos de lei por parte da extrema direita.

De acordo com o Movement Advancement Project, uma organização sem fins lucrativos que se concentra na igualdade para pessoas LGBTQIAP+, pelo menos 25 estados estadunidenses têm alguma lei que proíbe a participação de crianças e adolescentes trans em competições esportivas de acordo com a sua identidade de gênero. Além disso, de acordo com o Trans Legislation Tracker, uma organização de pesquisa independente que acompanha projetos de lei que impactam a vida de pessoas trans nos Estados Unidos, desde 2015 foram propostos pelo menos 304 projetos de lei nas diversas casas legislativas estadunidenses limitando a participação de pessoas trans em competições esportivas. No Brasil, de acordo com levantamento realizado pelo Projeto Corpas Trans, só nas esferas federal e estaduais foram propostos, entre 29 de janeiro de 2023 e 29 de janeiro de 2024, pelo menos 13 projetos de lei limitando a participação de pessoas trans em competições esportivas.

Assim, apesar de as evidências científicas reforçarem cada vez mais o fato de mulheres trans não serem homens biológicos e, por isso, não representarem uma ameaça a mulheres cis em competições esportivas, nós continuamos a ser difamadas e impedidas de participar de esportes competitivos. Mas, a quem interessa manter essa posição? Obtemos a resposta nas palavras de Sebastian Coe, presidente da World Athletics, “continuaremos a considerar que devemos manter a justiça para as atletas femininas acima de todas as outras considerações.” Que justiça é essa que a despeito de todas as evidências científicas insiste em segregar, em discriminar? Em seu anúncio público para o Mês do Orgulho, a ONU Mulheres esclarece as intenções subentendidas à fala de Coe: “Colocar falsamente os direitos das pessoas LGBTQIAP+ e, particularmente das pessoas trans, como antagonistas dos direitos das mulheres apenas amplia as divisões no movimento mais amplo pela igualdade de gênero, somente fortalecendo a extrema direita em sua eterna saga para promover retrocessos na saúde e nos direitos sexuais e reprodutivos, na educação sexual abrangente e em outras questões críticas”.

(*) Gabrielle Weber é professora da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP.

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