Que tiros serão esses?
O Brasil nunca viveu uma guerra civil. Mas já amargou momentos em que os militares oprimiram o povo, suprimindo garantias individuais, suspendendo a democracia, desrespeitando as instituições do Estado de Direito, torturando e matando opositores e suspeitos de o serem. De modo que a sombra da ditadura militar sempre paira sobre a Nação, alimentada pelo imaginário pobre de indivíduos e grupos de índole autoritária em defesa de seus privilégios, grandes ou pequenos, reais ou fantasiosos.
A intervenção federal no Rio de Janeiro, colocando a gestão da segurança pública nas mãos de um general, é um acontecimento que se reveste de tamanha gravidade que, em tempos outros, provocaria posicionamentos e manifestações imediatos e contundentes de numerosas entidades e organizações da sociedade civil. Talvez isso não esteja acontecendo por causa do torpor em que estamos todos mergulhados, assistindo, diariamente, a escalada de um golpe midiático-parlamentar-jurídico que pode descambar para um governo senão militar, pelo menos militarizado, porque a panela de pressão do descontentamento pode estar a caminho da explosão, por conta da precarização das condições de vida e trabalho e também em decorrência das sucessivas afrontas diretas aos mais pobres, da parte de autoridades governamentais, dos meios de comunicação de massas hegemônicos e de indivíduos e pequenos grupos dos andares médio e superior da estrutura social injusta.
Caso se materialize essa hipótese, de um governo militar ou militarizado, será bastante diferente do que aconteceu em 1964/1968-1985, pelas seguintes razões: o país, hoje, é urbano e não rural, o que modifica substancialmente o “terreno” dos confrontos; os meios de comunicação de massas, apesar da sua condição monopólica, não dominam sozinhos a opinião pública, formada também via redes sociais; a sociedade está literalmente dividida ao meio, tornando difícil uma hegemonia a favor do golpe em andamento; o apoio de potências estrangeiras pode até existir, às escondidas, mas não é semelhante àquele que foi dado no contexto bipolar da Guerra Fria; a caserna não está tão assanhada, como em 1964 e, além disso, tem mais a perder, na atual conjuntura.
Que confrontos de rua possam vir a ocorrer, como estopim para uma quase-guerra civil é uma possibilidade que pode, rapidamente, se tornar probabilidade. Caso isso se materialize, as forças de segurança pública se revelarão insuficientes e incapazes de lidar com o problema. No Rio de Janeiro essas forças já faliram há muito tempo, daí não haver fato novo que justifique o decreto presidencial de intervenção federal.
Esta intervenção é equivocada e inoportuna.
É equivocada porque não é papel das forças armadas atuar na segurança pública, resolver conflitos internos. Elas destinam-se à defesa nacional e seu preparo é para conter ou eliminar o inimigo externo ou para atacar além-fronteiras. Tanto assim que no golpe militar de 1964 o alvo era a “ameaça comunista”, parafraseando os americanos. As forças armadas são preparadas para matar e as forças de segurança pública não devem ser: seu papel é garantir a lei e a ordem, respeitando a vida até o ponto em que matar seja inevitável. Concepção, aliás, afastada quando a polícia é, erroneamente, militar.
É equivocada porque coloca um militar no comando de uma política pública estadual, coisa que a Constituição não permite: o governo, no Brasil, é civil. Não só isso: Exército, Marinha e Aeronáutica hoje respondem ao Ministério da Defesa, sempre ocupado por um civil, a fim de assegurar que a Política comanda a Força, não o contrário, em sintonia com a concepção estratégica tão bem defendida por Liddel Hart, inspiradora dessa configuração.
É inoportuna essa intervenção, por vários motivos: “joga” o exército no meio de uma guerra civil já em andamento, abrindo a porta para o risco de desmoralização do último recurso contra a desordem; reveste-se de um oportunismo político-partidário evidente: levanta uma cortina de fumaça sobre o confronto institucional que está levando o governo ilegítimo para o muro, acuando-o diante da opinião pública que começa a se reverter; declara guerra aberta e concreta contra áreas de pobreza crônicas, num momento em que está evidente a postura antipobres das reformas e políticas encetadas pelo governo.
Parece, entretanto, que o governo está perdendo a confiança no poder do engodo. Ele tem funcionado até aqui, mas começa a dar sinais de esgotamento. Nesse caso, o próximo recurso é a força. Será ela, entretanto, tão eficaz quanto o engodo até agora praticado?
Será que os estrategistas do governo, perceberam que o golpe está perdendo força e devem, por isso, aparentar o contrário? Talvez tenham lido muito amadoristicamente a máxima de Sunt-Tzu (A arte da guerra) que indica como bom procedimento iludir o inimigo: parecer forte quando fraco, parecer fraco quando forte.
Mas não se esqueçam: “Toda ação militar é permeável às forças da inteligência e a seus efeitos” (Clausewitz), especialmente se essa ação militar não se originou de raciocínios formulados com um mínimo de Inteligência.
(*) Valdemir Pires é economista, professor e pesquisador da Unesp.