Sobre o tempo: Huygens, Lorde Kelvin e Curies
Desde quando comecei a ler além do exigido nos bancos escolares, desenvolvi admiração pelas pessoas voltadas para a filosofia e prazerosamente procuro entender seus escritos e obras de referência. Como não estou apto a arroubos intelectuais na área, guio-me pela máxima de Nelson Rodrigues: “com a profundidade que uma formiguinha atravessaria sem molhar os calcanhares”. Penso que a diversão da descoberta compensa qualquer dificuldade.
Por volta de 2010, deparei-me com Robert M. Pirsig e seu livro Zen e a arte da manutenção de motocicletas. Na época, deliciei-me com a maneira peculiar de olhar para a engenharia como uma atividade mental diretamente relacionada com a percepção do mundo material.
Embora aparentemente esquecidas, as ideias de Pirsig estavam depositadas em alguma camada de neurônios do meu cérebro e foram reavivadas pelo texto do colega João Francisco Justo Filho.
No afã de aprofundar-me no tema, perdido em minha bagunça livresca, lembrei-me da livraria cujo puxadinho descrevi no texto “Maneiras de olhar e pensar”, e lá encontrei uma nova edição, ampliada por uma introdução do autor e uma transcrição de cartas trocadas com o editor.
A leitura flui deliciosamente, passando por uma discussão sobre a obra do filósofo escocês David Hume (1711-1776) sobre a ideia de que “todo conhecimento parte da experiência”, complementada por Immanuel Kant (1724-1804) sobre o “conhecimento a priori que surge com a experiência e não da experiência”.
Como o tempo não está presente nos dados de nossos sentidos da maneira como são captados, constitui o que Kant chama de uma “intuição” fornecida pela “mente” ao receber “dados do ambiente”. Aparentemente, o conceito de tempo relaciona-se a uma abstração, entretanto, o segundo princípio da termodinâmica, fazendo uso da ideia de entropia, associa-o a uma entidade numérica sempre crescente, estabelecendo a chamada seta do tempo.
Como medir o tempo, entidade às vezes vista como abstrata e essencial em nossa vida diária, é questão que me intrigou desde quando trabalhei, nos anos 1970, no laboratório de desenvolvimento de equipamentos de comunicação digital. No dia a dia dos projetos e montagens eram comuns as expressões “sinal de relógio” e “clock do circuito”.
Nos dias de hoje, com os sistemas eletrônicos digitais permeando a vida no nosso planeta, é comum as pessoas falarem que os processadores estão cada dia mais rápidos, pois seus clocks são de giga-hertz, isto é, de bilhões de ciclos por segundo, constituindo uma medida de tempo dada pelo número de repetições de um fenômeno físico periódico.
Esta foi a maneira que os babilônios e egípcios encontraram para executar medidas de tempo. Escolheram um fenômeno periódico, o movimento da Terra em torno do Sol que, referenciado na Terra, implicava a visão do movimento do Sol da nascente para o poente, com a variação da sua sombra projetada indicando o horário do dia.
Não quero apresentar um estudo historiográfico, mas é sabido que Salomon Coster (1620-1659), relojoeiro holandês de Haia, construiu o primeiro relógio a pêndulo, inventado por Christian Huygens (1629-1695). Esse fato é um importante marco tecnológico com a observação do número de repetições de uma oscilação mecânica, associado à frequência da oscilação passar a ser um medidor do andamento da seta do tempo.
Durante boa parte do século XX e até hoje, costuma ser indicativo de status social portar um relógio mecânico altamente sofisticado, construído com pequenas engrenagens e polias, feito de materiais valiosos com processos de montagem de extrema precisão e cuidado.
Ampliando a ideia de medida de tempo pela repetitividade de um fenômeno físico, Willian Thomson (Lord Kelvin – 1824-1907), o mesmo do “computador do tamanho de uma sala”, sugeriu o uso de transições atômicas do hidrogênio ou sódio para medição do tempo, na segunda edição do seu livro Elements of Natural Philosophy, publicado em 1879.
Uma tecnologia também bastante utilizada para a medida de tempo, a partir de oscilações, é a montagem de osciladores eletrônicos fundamentados em cristais de quartzo com propriedade piezoelétrica, isto é, aparecimento de diferença de potencial elétrico por variação da pressão mecânica sobre o dispositivo. Essa ideia foi inicialmente concebida em 1880 por Jacques Curie (1855-1941) e Pierre Curie (1859-1906).
Modernamente, os três tipos de tecnologia de medida têm amplo uso: a mecânica, em dispositivos miniaturizados de robótica; a atômica, na distribuição de sinais mundiais de tempo (GPS); e a eletrônica, nos processadores de computadores e dispositivos de telefonia móvel.
Voltando ao final dos anos 1970, nos laboratórios de desenvolvimento era essencial projetar circuitos para sincronizar sinais elétricos periódicos, isto é, fazê-los ter o mesmo ritmo de repetição (sincronismo em frequência) e começar a contagem simultaneamente (sincronismo de fase).
Depois de 40 anos trabalhando com sincronismo de sinais eletrônicos, a leitura de Robert M. Pirsig e seu livro Zen e a arte da manutenção de motocicletas proporciona uma reflexão sobre a importância da modelagem de fenômenos oscilatórios acoplados, associados às ciências da vida (cronobiologia) e aos fenômenos neurais, naturais e artificiais.
(*) José Roberto Castilho Piqueira, professor da Escola Politécnica da USP.
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