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Cidades

A dengue também é uma tragédia do nosso dia-a-dia, alerta psicóloga

Viviane Oliveira | 03/02/2013 07:35
Para a Psicóloga a maior tragédia hoje em Campo Grande é a dengue.  (Foto: Simão Nogueira)
Para a Psicóloga a maior tragédia hoje em Campo Grande é a dengue. (Foto: Simão Nogueira)

Coordenadora do setor de psicologia da AACC/CETOHI (Centro de Tratamento Oncológico Infantil) e voluntária da Defesa Civil, a psicóloga Cláudia Pinho, que atua na área de emergências e desastres, afirma que a epidemia de dengue é hoje a tragédia de Campo Grande, em uma semana em que essa palavra foi muito pronunciada e escrita no País todo, diante das mortes de 236 jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A Capital registra em 2013 a maior epidemia da história, com mais de 17 mil casos notificados e o alerta vem da psicóloga: é uma tragédia do nosso dia-a-dia, da qual todos nós temos culpa.

Para Cláudia, a maioria das epidemias, desastres e tragédias poderiam ser evitadas se fossem feitos trabalhos de prevenção e fiscalização por parte das autoridades competentes. Em meio ao clima de luto e de tentativa de reverter a epidemia de dengue em Campo Grande, a psicóloga lembra o dia em que foi para o Rio de Janeiro com a missão de dar apoio psicológico para as vítimas das chuvas na região Serrana em janeiro de 2011, onde morreram 918 pessoas em um dos maiores desastres naturais do país, e como lidar com dramas assim.

Em entrevista ao Campo Grande News, Cláudia fala sobre o trabalho dos psicólogos de emergências e desastres, a epidemia da dengue em Campo Grande, de como tratar uma pessoa envolvida diretamente com tragédias e de quando um paciente precisa de um tratamento mais longo. Ainda de acordo com a psicóloga, atuar em situações de emergências necessita de ética, capacitação, amor ao próximo e cuidado.

Campo Grande News: Qual é a maior tragédia hoje em Campo Grande?


Cláudia Pinho - É a questão da dengue. Porque na realidade a psicologia das emergências e desastres não é somente o resultado final. Ela atua também assim como na esfera da Defesa Civil, de forma preventiva também, porém, por exemplo, na Defesa Civil não tem nenhuma psicólogo que atua, eu sou voluntária lá e seria muito importante se as autoridades competentes tivesse esse olhar voltado para a contratação de psicólogos para trabalhar de forma preventiva em Campo Grande. O olhar precisa ser diferenciado, pessoas estão morrendo por conta da dengue e é inadmissível porque é uma questão de educação. Não é difícil você andar na rua e ver que o carro da frente jogou uma latinha pela janela, não é difícil você estar andando pelas calçadas e vê os bueiros entupidos, nos bairros as pessoas jogam lixo nas ruas. Então não adianta falar só da administração municipal, a população é responsável por isso, não cuidam do seu terreno, deixam as casas fechadas impedindo que se faça um trabalho de prevenção. A responsabilidade é também da comunidade. Nós precisaríamos ter uma equipe devidamente treinada para irmos às escolas, comunidades, para poder conscientizar da importância de cada um fazer o seu papel. Não adianta nós ficarmos culpando um ou outro. A gente tem que querer fazer. A pessoa se conscientiza disso é treinada para isso e não faz porque acha que nunca vai acontecer com ela. É ridículo e vergonhoso mais uma vez Campo Grande sendo destaque em rede nacional por causa de epidemia de dengue. Da mesma forma é a questão do trânsito, que também é uma questão de educação.


Campo Grande News: Que caso você vê no dia-a-dia que é o maior gerador de tragédia em Campo Grande?


Cláudia Pinho - Eu tive a oportunidade de participar de uma das ocorrências da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros e me lembro de um chamado de que havia tido um incêndio na região do Guanandizão, o fogo foi ocasionado por gato na fiação elétrica e acabou atingindo a casa de uma família, que não tinha boas condições financeiras. A Defesa Civil vai lá e interdita a casa porque está com risco de cair a parede, só que a pessoa não tem para onde ir, ela vai voltar lá e depois de um tempo vai construir e fazer gato de novo. Ela precisa ter consciência que essa economia que faz no final do mês pode prejudicar alguém e mais do que isso ela está tentando contra a vida dela e da família. Teria que ter um projeto com a Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, psicólogos e com a comunidade de uma forma geral. Por exemplo, nós fizemos aquela visita, passados um tempo nós retornamos para ver como está aquela região, falamos com o responsável pela comunidade, falamos com aquela família que teve a perda material e marcamos uma palestra para conscientiza-los naquele momento. Isso não só uma vez, mas constantemente de forma que isso vai se contaminando.


Campo Grande News: A pessoa consegue ser a mesma depois de enfrentar um drama dessas proporções, como a que ocorreu na região Serrana no (RJ) e em Santa Maria (RS)?

Casas destruídas pelas chuvas e deslizamento de terra, no bairro de Campo Grande, em Teresópolis  região Serrana do Rio, em janeiro de 2011.  (Foto: Daniel Marenco/Folhapress)
Casas destruídas pelas chuvas e deslizamento de terra, no bairro de Campo Grande, em Teresópolis região Serrana do Rio, em janeiro de 2011. (Foto: Daniel Marenco/Folhapress)

Cláudia Pinho - Nós temos a questão da resiliência. É mais ou menos assim: a pessoa tem dois limões, você vai fazer uma limonada ou vai ficar chupando limão. Existe pessoa que chega e diz para a outra não chorar, para ser forte. A sociedade tem uma dificuldade muito grande de lidar com o choro com a angústia. Nós precisamos permitir que essas pessoas sintam e que elas possam elaborar o seu luto, ela perdeu um ente querido e em casos de tragédia, como no caso da região Serrana, perdeu seus bens. A pessoa não precisa fazer de conta que está tudo bem, tem pessoas que têm uma dificuldade maior de sobressair e outras pessoas são mais resiliêntes, no entanto elas sofrem do mesmo jeito. Eu vou te dar um exemplo do Rio de Janeiro, em Nova Friburgo. Eu me lembro de que cheguei em um dos abrigos no Rio, um rapaz de 22 já havia organizado grupos, almoxarifado, onde ficaria os homens, as mulheres, as crianças, horários de banho. Tudo organizado. Depois esse rapaz veio me contar a história dele. Casado com uma jovem de 19 anos e a bebê de um ano e meio, eles estavam dormindo quando deu a primeira chuva forte e ele ouviu todo mundo chamando para sair porque estava caindo tudo. Ele conseguiu sair da casa e salvou a esposa e a neném, eles foram para o meio da rua em um local aparentemente seguro e ai ele começou a procurar os familiares para ajudar salvar os demais. Ele viu a mãe e ficou preocupado com o irmão dele que não estava ali. Era de madrugada, mas mesmo assim ele foi até a casa do irmão, quando de repente não conseguiu mais seguir e voltou. No outro dia, quando amanheceu, ele voltou para o lugar. Quando chegou na região encontrou o irmão, a cunhada, e as duas sobrinhas mortas. Esse menino foi tão forte que ele dizia que não podia se entregar a dor naquele momento porque pelas pessoas mortas não poderia fazer mais nada, mas poderia salvar outras pessoas com o apoio, carinho e acolhimento. Ele se sobressaiu a essa dificuldade. Em Santa Maria (RS) tem muitos estudantes na área de saúde que perderam amigos e estão nos hospitais como voluntários ajudando outras pessoas. Existe muito ainda do ser humano em poder dar o seu melhor. Eu vejo no episódio de Santa Maria que a gente pode sim acreditar nas pessoas e em um mundo melhor. Tem pessoas que se salvaram da boate e voltaram para poder ajudar, nós não somos super-heróis, mas somos seres humanos.

Campo Grande News: Quando a pessoa precisa de um tratamento mais longo? Como perceber?

Cláudia Pinho - Independente ou não de perceber a pessoa precisa sim de um acompanhamento. O luto não tem como nós dizermos que vai resolver em uma semana, um mês ou em seis meses. Vai depender do indíviduo, de como ele vai se sobressair a tudo isso que aconteceu como ele. Então de repente ele pode levar até um ano e meio para processar tudo isso. Quando você uma mãe que dois anos que diz que o quarto da filha está do mesmo jeito de quando ela saiu, essa pessoa precisa de ajuda para elaborar esse luto. Algumas vezes por ser aquela que deu força e não chorou. A sociedade tem dificuldade de lidar com a dor e com a emoção. As pessoas colocam na boca do outro dizendo não chora seja forte, quando um pai de família morre é comum a pessoa virar para a criança e dizer agora você que é o dono da casa, você que é o chefe. Nós precisamos se ater do que nós falamos para o outro. Crianças também, por exemplo, quando falece o avô, as pessoas falam ele morreu porque estava doentinha. Então a criança pensa então seu eu ficar doentinho eu vou morrer. Então nós temos que ter muito cuidado com o que falamos. O profissional que for atuar em qualquer situação de luto e de tragédias precisa ter capacitação, um olhar mais atento e saber o momento certo de falar. O primeiro momento é o toque, um abraço e ouvir.

Campo Grande News: Que tipo de sinais a pessoa da de que não está conseguindo superar uma dor de perda?

Cláudia Pinho - Cada vez mais o luto vem sendo estudado com profundidade pelos profissionais de psicologia. Quanto maior o vínculo, maior a dor de quem perdeu. Apesar de a perda nos submeter a uma série de emoções estressantes, aquela que não está conseguindo superar a dor, fica mais tempo presa a uma melancolia muito intensa, tem perturbação do sono de longa duração, tem medo, e ainda nas crianças existe a agressão intensificada e regressão exagerada. É um intenso sofrimento e se desestrutura totalmente e enquanto não sair desse quadro da patologia o enlutado acreditará que não conseguirá mais nada. Começa a ficar preocupante do ponto de vista da psicologia, quando percebemos que o individuo nega a finitude de um processo de vida naquela relação e vê que não pode fazer tudo o que queria, de certa forma ter controlado a vida do outro.

Campo Grande News: Esse atendimento tem que ser imediato e se isso não ocorrer é possível fazer uma intervenção?

Cláudia Pinho - A psicologia tem muito a contribuir. Os psicólogos podem dar um primeiro apoio juntamente com os demais profissionais respeitando as operações de resgate. É importante ainda nossa presença nos hospitais, cemitérios, locais de reconhecimento dos corpos, nos velórios, sepultamentos, no caso de Santa Maria, no ginásio, enfim, visando dar suporte e acolhimento aos parentes das vítimas, mas tudo de forma organizada, planejada e coordenada. Sempre é possível e necessário fazermos intervenções. A psicologia comunitária juntamente com a atuação do psicólogo no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) é fundamental para trabalhar inclusive vulnerabilidades presente e inserir de maneira conjunta essas famílias que necessitam acompanhamento.

 Incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, onde 236 morreram e 119 permanecem internadas.
Incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, onde 236 morreram e 119 permanecem internadas.

Campo Grande News: No caso de Santa Maria (RS) são dois sentimentos de dor e de indignação. Tem um foco para tratar casos como esse?

Cláudia Pinho - É preciso ressignificar sua própria vida. No primeiro momento deve se fazer o luto, chorar a perda, passar pelos estágios da dor. Durante este processo às vezes temos a impressão de que estamos saindo dessa fase, mas que ela volta e vai se repetindo. No entanto apesar das recaídas, vamos percebendo uma sensação de que a dor vai se transformando em uma identificação construtiva e não mais ficamos presos no processo de lamentação. Não há como medir ou dar um prazo para ter esse luto elaborado, um ano, dois, pode ser normal para algumas pessoas. O luto pode ser patológico quando não podemos e não queremos nos libertar dele.

Campo Grande News: Aqui em Campo Grande tem um número suficiente de profissionais formados para fazer esse tipo de atendimento?

Cláudia Pinho - No atendimento à pessoa enlutada é preciso aprender a trabalhar com essas pessoas. É cada vez mais evidente que a psicoterapia do luto requer aprimoramento, especialização. É bom de forma geral sabermos trabalhar em psicoterapia, mas para trabalhar com pessoas enlutadas, há muitos conhecimentos específicos que são necessários então a oportunidade em se especializar. Em Campo Grande é bem restrito o número de profissionais capacitados para este formato.

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