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História da fé tem “troca de santo” e saga de Abadia por trem e carro de boi

Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio carregam a história de uma fé mineira que se confunde com o surgimento de Campo Grande

Aline dos Santos | 26/08/2018 07:15
História da fé  tem “troca de santo” e saga de Abadia por trem e carro de boi
Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio dividem altar na matriz e catedral de Campo Grande. (Foto: Henrique Kawaminami)
Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio dividem altar na matriz e catedral de Campo Grande. (Foto: Henrique Kawaminami)

Lado a lado na paz da catedral - no improvável silêncio em meio aos ruídos do Centro da cidade, potencializados por uma gigantesca obra-, Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio carregam a história de uma fé mineira que se confunde com o surgimento de Campo Grande. Os dois são protagonistas de longas jornadas, sujeitos à sazonalidade de devoções e assistem acirrar de ânimos sobre uma futura catedral.

De 1913, portanto há 105 anos, chega um relatório do que havia no interior da igreja da cidade. No “arrolamento das alfaias existentes na Igreja Matriz”, consta uma imagem de Santo Antônio pequena, “velha e quase sem serventia”.

A lista também faz menção a uma grande imagem de Nossa Senhora da Abadia, “em bom estado e nova”. O documento foi anexado a um processo em que dois padres disputavam a chave da igreja e compõe o arquivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul.

Há até relato em livro da troca do padroeiro quando a imagem da santa chegou à vila de Campo Grande. “A mesma foi trazida via ferrovia Noroeste do Brasil de Campo Grande, e no carro de boi, levada para a cidade. O fato foi tão marcante para a população que a mesma trocou o antigo orago, que era Santo Antônio, dando o título de padroeira para a Virgem”.

Em tempos atuais, a suspeita é que se trate de confusão porque o santo é padroeiro da cidade, enquanto Nossa Senhora da Abadia é padroeira da Diocese de Campo Grande. Tanto que a igreja, na travessa Lydia Baís, esquina com a rua 15 de Novembro, tem o nome de Catedral de Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio.

A jornada de Abadia

Na paróquia criada em 2011, réplica da imagem de santa. (Foto: Henrique Kawaminami)
Na paróquia criada em 2011, réplica da imagem de santa. (Foto: Henrique Kawaminami)

O fato é que a imagem da santa, com 1m30 e origem francesa, fez uma longa jornada. Primeiro, veio de trem de São Paulo a Três Lagoas, onde terminava os trilhos. Depois, seguiu viagem de carroça até Ribas do Rio Pardo, os quase 100 quilômetros restantes até Campo Grande foram completados de carro de boi.

De acordo com o padre Paulo Vital, da Paróquia Nossa Senhora de Abadia, a imagem chegou à cidade em 3 de agosto de 1912. Trazer a imagem e fazer uma igreja era o compromisso de fé de Eliseu Ramos, que trouxe a devoção de sua terra natal: Minas Gerais. A promessa seria cumprida se tudo corresse bem na sua jornada para o então Mato Grosso. 

“Passou sete anos preparando e divulgando a devoção. Em 1912, conseguiu através de doações, principalmente com a ajuda de Manoel da Costa Lima, o dinheiro para comprar a imagem”, conta Vital. 

A primeira parada em solo campo-grandense foi na fazenda Rancharia, onde hoje está o condomínio de luxo da Dahma. Abadia foi a primeira devoção local à Nossa Senhora. “Muita gente da cidade se chamava Abadia, Maria Abadia, Abadia Maria”, afirma o padre. Conforme o IBGE, o "pico" de Abadias em Campo Grande foi na década de 1950. A festa da chegada, em 1912, ganha retrato em texto da professora Lygia Carriço de Oliveira Lima. 

Abadia foi a primeira devoção à Maria em Campo Grande. (Foto: Henrique Kawaminami)
Abadia foi a primeira devoção à Maria em Campo Grande. (Foto: Henrique Kawaminami)

“Foram calculadas duas mil pessoas no séquito. Umas até choravam de alegria e de felicidade. Muitas famílias resolveram colocar em suas janelas toalhas brancas, vasos de flores, velas e imagens de santos. No altar pairava um grande e inaudito sentimento de religiosidade. E a presença de Nossa Senhora de Abadia prenunciava um novo tempo para Campo Grande”.

Em 9 de agosto, foi entronizada na “pequenina e modesta igreja de Santo Antônio”. Com as décadas, a devoção acabou deixada de lado pela projeção de outros santos. Nesse cenário pesam a vinda de outros migrantes, numa terra antes de mineiros, e padres de outros segmentos da igreja católica, como os redentoristas, que abriram espaço para a devoção à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (alçada ano passado ao posto de padroeira de Mato Grosso do Sul); e salesianos, com devoção a São José e Nossa Senhora Auxiliadora.

A retomada aconteceu só em 2002, com a comunidade Santíssima Trindade, na Chácara Cachoeira. O padre Paulo Vital conta que na primeira visita, dom Vitório Pavanello, atual bispo emérito, encarregou o grupo de fazer um santuário para Abadia, portanto, a comunidade trocou de nome e virou paróquia em 2011.

Catedral e nova polêmica

Catedral de Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio. (Foto: Henrique Kawaminami)
Catedral de Nossa Senhora da Abadia e Santo Antônio. (Foto: Henrique Kawaminami)

No histórico, o padre relata a doação de uma área, atual praça do Rádio Clube, para a construção de uma igreja gótica no ano de 1915; inclusive com pedra fundamental colocada por três vezes. Como ficava muito próximo à igreja São José, o projeto teve adiamentos até se perder no tempo.

No salão da paróquia, Abadia está em grandes réplicas da imagem original, camisetas e artigos religiosos. O plano de ampliar a “casa” esbarrou numa questão política.

Em 2015, a Lei 5.608 autorizou Poder Executivo Municipal a desafetar área de domínio público municipal. Sendo 5 mil m² (metros quadrados) de permuta para Arquidiocese, destinada à construção da Igreja Nossa Senhora da Abadia, e doação de 2 mil m² para o Setlog (Sindicato de Transporte Logístico de Mato Grosso do Sul).

O processo começou na gestão de Alcides Bernal (PP), mas foi homologado por Gilmar Olarte. No ano passado, Marquinhos Trad (PSD) propôs aos vereadores uma nova lei, revogando as doações de áreas.

Conforme a prefeitura, a lei tinha dois erros: informação incorreta do tamanho da área e ausência de artigo de reversibilidade. A suspensão dos acordos foi publicada em março deste ano.

O santuário nem saiu do papel, mas há prenúncio de uma nova polêmica. O desejo era de que a nova igreja se tornasse a catedral da cidade, título que desde os primórdios cabe à matriz Santo Antônio.

O santo traz a devoção do pioneiro José Antônio Pereira, fundador, em 1899 da Vila Santo Antônio de Campo Grande. Conta a história que escolheu o ponto mais alto da cidade, a partir da perspectiva de quem olhava da hoje avenida Fernando Côrrea da Costa, para erguer a primeira igreja.

Na viagem de mudança para a vila, José Antônio e família passaram por região com doença epidêmica. A promessa era construir uma igreja se não perdesse nenhum dos seus.

No arquivo do Tribunal de Justiça, documento cita santo  "sem serventia".
No arquivo do Tribunal de Justiça, documento cita santo "sem serventia".

Beleza oculta

Em Campo Grande desde 1912, imagem  é restaurada por Mara Inês. Trabalho revelou sapatos dourados. (Foto: Paulo Francis)
Em Campo Grande desde 1912, imagem é restaurada por Mara Inês. Trabalho revelou sapatos dourados. (Foto: Paulo Francis)
Imagem chegou a ateliê de restauração com sapatos pretos. (Foto: Paulo Francis)
Imagem chegou a ateliê de restauração com sapatos pretos. (Foto: Paulo Francis)

A grande imagem de Nossa Senhora de Abadia permaneceu muitos anos na igreja São José e depois voltou para a matriz. Atualmente, passa por uma restauração, que pretende chegar à pintura original. “É um trabalho cirúrgico”, detalha o publicitário Pedro Fenelon, paroquiano da Santo Antônio, que também se dedica a preservar a história da igreja matriz.

Ele conta que, a princípio, acreditava-se que a imagem de Abadia era de origem espanhola, mas a origem é francesa e, deve contar, ao menos, com 116 anos.

Desde 19 de julho, a imagem da santa está aos cuidados da restauradora Mara Inês da Cruz Silva, que, num trabalho de paciência, delicadeza e zelo, resgata a beleza encoberta pelo tempo, excesso de cola e tinta

Não foi permitido fotografia da imagem por completo, mas é possível antecipar que a santa centenária já teve cores originais recuperadas. Como o sapato que do preto se descobriu dourado e com singelos desenhos. O manto é azul claro em vez do azul mais vivo, grafismos delicados que estampam o vestido e o douramento, a técnica que primeiro banha a imagem com folha de ouro.

“Olhava para essa imagem na igreja e dava uma dózinha.Tinha o dedo quebrado. O menino Jesus faltado um dedo”,conta Mara Inês. Antes de começar a restauração de fato, ela estudou a imagem e sua história.

Um detalhe na imagem e suas características, como olhos de vidro, denotam a origem francesa. Ela encontrou uma santa igual no Rio de Janeiro e vai atrás também de sua origem, diante dos poucos registros sobre a Nossa Senhora de Abadia de Campo Grande.

Santo Antônio é padroeiro de Campo Grande, enquanto Abadia é padroeira da Arquidiocese. (Foto: Henrique Kawaminami)
Santo Antônio é padroeiro de Campo Grande, enquanto Abadia é padroeira da Arquidiocese. (Foto: Henrique Kawaminami)
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