"Não vai ser o último": diz policial à vítima que há 2 meses denuncia agressor
Mulher diz que teve de percorrer delegacias até conseguir registrar boletim de ocorrência da maneira certa
RESUMO
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Assistente social aposentada, de 42 anos, denuncia tentativa de feminicídio por parte do ex-companheiro, em Nova Alvorada do Sul. O caso, registrado em maio, envolve ameaças com faca e agressões físicas, resultando na determinação do uso de tornozeleira eletrônica pelo agressor. A vítima questiona a demora na resolução do caso e expressa temor por novas agressões. A mulher relata que o relacionamento, iniciado em 2022, tornou-se abusivo, com o controle do ex-companheiro sobre suas interações sociais e recorrentes agressões verbais e físicas. Ela acusa servidoras públicas de Nova Alvorada do Sul de interferirem no registro da ocorrência, dificultando a tipificação como tentativa de feminicídio. A prefeitura nega as acusações, afirmando ter prestado apoio à vítima. O caso segue sob investigação, com a vítima recebendo acompanhamento jurídico em Campo Grande.
As mortes de Vanessa Eugênia de Medeiros, 23 anos, e da filha, Sophie Eugênia Borges, 10 meses, asfixiadas e carbonizadas em Campo Grande, mexeram com a assistente social aposentada, de 42 anos. Ela tenta a prisão do ex, sem sucesso. “Já passou de dois meses, entendeu? E nada foi resolvido. E ele continuou solto do mesmo jeito, entendeu? E hoje [terça], eu acordo com mais um feminicídio”, disse a mulher nesta semana ao Campo Grande News, questionando o andamento da investigação do caso dela e lembrando de frases que ouviu e mostram o quanto o crime é algo cultural em Mato Grosso do Sul.
Ela relata que entre idas e vinda à delegacia, várias vezes recebeu comentários nada animadores. Em um dos áudios encaminhados por ela à reportagem um policial diz: “Sim, não vai ser o primeiro, nem o último, a senhora pode ter certeza, porque tá dentro da nossa cultura”. Depois, ele a orientou a entrar em contato com a Defensoria Pública ou com os advogados que acompanham o caso dela para ter atualizações.
O medo, segundo ela, é que seja vítima de outras agressões. Desde o dia 27 de maio, o ex-companheiro, orientador educacional de 49 anos, está sendo monitorado por meio de tornozeleira eletrônica, proibido de se aproximar a menos de 500 metros dela, que está em Campo Grande, conforme decisão do plantão da comarca da Capital.
A denúncia de tentativa de feminicídio é um dos recortes da história, que ainda tem acusação de interferência de colegas de trabalho dele para evitar que o boletim de ocorrência fosse registrado com a tipificação. A prefeitura de Nova Alvorada nega que tenha ocorrido esse direcionamento (resposta completa abaixo).
A relação entre a assistente social e o orientador começou por meio de aplicativo, no fim de 2022. Os dois só se conheceram pessoalmente em fevereiro do ano seguinte e, em dezembro, decidiram morar juntos. Em janeiro de 2024, ela se mudou de Campo Grande para Nova Alvorada do Sul, indo morar na casa dele.
“Ele falou que estava solteiro há 10 anos, que estava esperando a pessoa certa, sabe aquela história de felizes para sempre?”, recordou.
Segundo a assistente aposentada, desde o começo era orientada a não falar com os vizinhos. “Todos os vizinhos tinham defeito, desde sempre. Eu ficava do portão para dentro, não tinha amizade.”
A mulher diz que a situação se tornou mais explícita a partir de maio de 2024, depois de um incidente em casa. Ela conta que estava dormindo quando ele chegou em casa e acabou atropelando e matando o gato de estimação dela. “Acordei com o barulho e começou a discussão, ele começou a me culpar pela morte do gato, isso foi a noite inteira, ele falando, falando”, diz.
No dia seguinte, conta que passou mal e foi ao posto de saúde, se sentindo culpada pela morte do gato. Foi recebida pela agente de saúde que orientou tratamento psicológico. Ela é assistente social aposentada por questões de saúde, depois de ter feito cirurgia bariátrica e entrado em quadro de depressão.
Em mensagem por WhatsApp, o companheiro a orientou a se comportar como “gente normal” e não o expor “para os outros”. Ela respondeu que conversava com a psicóloga dela e que, mesmo assim, não contava muitas coisas.
A situação em casa era sempre sensível, como quando ele era acordado à tarde por algum barulho que ela fazia. Em junho, a agressão física deixou cicatriz na boca. De acordo com a mulher, ele ainda justificou: “Tá vendo o que você me fez fazer?”.
A assistente relata que o relacionamento continuou instável, até que, no dia 9 de dezembro do ano passado, no fim da tarde, a discussão escalou e o homem a mandou embora da casa, e que não teria permitido que ela levasse nada do local.

A mulher alega que o companheiro pegou uma faca e foi em direção a ela, tentando fazer com que ela entrasse no carro. “Ele encostou a faca no meu rosto”, afirma. Desesperada, gravou um áudio que mostra o momento da discussão e a ameaça dele. “(...) se vai apanhar aqui, você vai morrer aqui, cara (...)”.
Neste momento, resolveu sair de casa e pediu ajuda para uma servidora que trabalha na Coordenadoria de Políticas Públicas para Mulheres, com quem já tinha relatado as situações vividas com o companheiro. A mulher acredita que a servidora teria tentado evitar que ela fosse até a delegacia.
Já na delegacia, outra servidora foi acionada e as duas acompanharam o registro da ocorrência. A assistente social diz que as mulheres atrapalharam o relato dela e evitaram que o investigador ouvisse o áudio. O boletim acabou sendo registrado como ameaça. Ainda na delegacia, foi informada pelo investigador que o namorado tinha seis passagens.
Depois disso, voltou à casa para buscar os pertences e a Secretaria Municipal de Assistência Social ofereceu carro para o transporte até a Capital. Perguntou pela faca, mas diz que foi ignorada por todos. “Aceleraram para eu ir embora”, lembrando que foi orientada por elas a procurar a Casa da Mulher Brasileira.
A aposentada diz que há relação de amizade entre o ex-companheiro e as servidoras citadas por ela. Uma delas, que acompanhava a situação, disse que o problema aconteceu em casa e não no trabalho e, por isso, os fatos tinham relação.
Já em fevereiro, em Campo Grande, sozinha, fez o relato da situação na CBM. “A delegada ouviu o áudio e falou que não era ameaça, mas tentativa de feminicídio.” Diz que foi orientada a pedir medidas protetivas, registrar ocorrência por fraude processual, pela interferência das servidoras, e refazer o boletim contra o ex.
Em Nova Alvorada do Sul, no dia 22 de fevereiro, o mesmo boletim foi alterado. O investigador ouviu o áudio e o registro passou para tentativa de feminicídio.
Depois disso, o homem teria descumprido as medidas protetivas, entrando em contato com a mãe e uma amiga dela. “Para minha mãe, falou que estava perdendo a cabeça; para minha amiga, que eu era uma vagabunda". À reportagem, diz que também houve tentativa de invasão na casa em que mora na Capital, mas admitiu que não o viu para ter certeza de que se tratava dele.
No dia 22 de fevereiro, a juíza plantonista Denize de Barros Dódero determinou que o homem passasse a usar tornozeleira eletrônica por 180 dias, prazo que pode ser prorrogado. Em caso de descumprimento da determinação, poderá ser preso. O aparelho foi instalado no dia 27.
“Me foi concedido o botão do pânico, porque, mesmo longe, eu ainda corro risco. Qualquer movimento estranho eu posso, mas isso pra mim ainda não é válido. Por que as mulheres morrem? Porque os seus agressores continuam soltos”, avaliou. “Não tem ninguém que ajude, no interior é assim.”

Em Campo Grande, com apoio do Instituto Aciesp, que oferece ajuda a mulheres vítimas de violência, tem acompanhamento de advogados que estão tratando da tentativa de feminicídio, da fraude processual e da ação por danos, que ainda será protocolada contra o ex-companheiro, quanto pelo atendimento dela na Sala Lilás, feito pelas servidoras da coordenadoria.
Outro lado – Em nota, a prefeitura de Nova Alvorada do Sul desmentiu a alegação apresentada de fraude processual. “Todo suporte foi dado por parte da Administração, tanto pela Secretaria de Assistência Social, para cumprir a medida protetiva imposta (...) quanto para levá-la a outro município, como também pela Procuradoria Jurídica, que orientou a vítima.”
Sobre a função exercida pelo orientador educacional, diz que ele não trabalha, atualmente, no atendimento direto à população, e hoje está no setor da segurança alimentar, em serviço interno e burocrático.
Uma das servidoras citadas conversou com a reportagem e também desmentiu a mulher. Diz que foi ela quem não quis registrar boletim por tentativa de feminicídio e que quis ir embora da cidade. Sobre a relação com o suspeito, alega que eles trabalham no mesmo ambiente, na coordenadoria, mas não no setor de atendimento à mulher.
Já o ex-companheiro afirma que todos os “problemas” com as ex foram resolvidos na Justiça. “Com todas as minhas ex, os problemas foram resolvidos na Justiça, por acordos civilizados, com definições sobre guarda e pensões. Pago para todos os filhos em dia”, declarou.
Ele também alega que os fatos registrados no boletim de ocorrência feito em Nova Alvorada do Sul foram ignorados. “Foram feitos B.O.s falsos em Campo Grande no fim de fevereiro, já que eu não cedi às tentativas de extorsão dela e da família. A única culpa que eu tenho é a de não querer essa mulher aqui, mandar ela pegar as coisas dela e voltar para Campo Grande, onde ela tem a casa dela”, afirmou.
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