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Universalidade e generalidade não significam homogeneidade e exclusão

Por Danilo Silva Guimarães (*) | 23/04/2025 08:03

Dois princípios têm sido historicamente considerados muito importantes para a construção de conhecimentos acadêmicos e científicos: universalidade e generalidade. A noção contemporânea de universidade tem raiz na expressão latina universitas, que se refere à associação de pessoas de diferentes origens formando um todo, uma totalidade. A noção contemporânea de generalidade do conhecimento tem raiz na expressão latina studium generale, caracterizando a universidade como espaço aberto para todas as modalidades de conhecimento. Enquanto unversitas e studium generale, as universidades se definiam como espaços públicos de promoção e circulação de pessoas de diferentes culturas.

Antes de chegar à Europa, as universidades modernas surgiram a partir de várias tradições de ensino na Índia, na China e na África e no Oriente Médio. O site da Universidade de Nalanda afirma que a universidade foi fundada em 427 e durou mais de 800 anos, encerrando suas atividades no final do século 12. Naquele tempo, ela tinha mais de 2.000 professores e 20.000 alunos, atraindo pessoas de lugares tão distantes quanto China, Coreia, Japão, Tibete, Mongólia, Sri Lanka e Sudeste Asiático. A Universidade de Nalanda retomou suas atividades em 2014.

No senso comum, muitas vezes, as ideias de universalidade e generalidade estão associadas àquilo que seria válido para todas as pessoas, independentemente de posição social, cultura, território etc. Os estudos da natureza focalizariam aquilo que é geral e universal, ao passo que os estudos de história e das humanidades focalizariam o que é particular e mutável nas experiências. Nestes termos os objetos de estudo que não fossem domesticáveis para alcançar a generalidade e universalidade esperadas seriam excluídos da ciência, posto que o método científico rigoroso seria fundamentalmente único, permitindo a homogeneidade ou consenso entre diferentes cientistas quanto às teorias em disputa. Os conhecimentos científicos seriam uma coleção de verdades sobre o mundo a ser progressivamente descoberto, em substituição às verdades professadas pelas autoridades religiosas e místicas do passado.

Estudos de psicologia da percepção, por sua vez, indicam que a noção de totalidade é inclusiva das partes. De modo que uma totalidade é constituída como uma unidade de partes diferenciadas e suas relações. Por exemplo: figura, fundo e fronteira entre a figura e o fundo. Se tomamos a ciência como figura e os conhecimentos extracientíficos como fundo, haveria uma relação entre eles.

Neste caso, é preciso considerar a presença de ambivalências, ambiguidades e contradições, na medida em que algumas fronteiras não contrastam a figura e o fundo nitidamente e nem sempre do mesmo jeito. Por exemplo, gradientes de transição de cores em que não é possível perceber bem quando uma cor já se tornou outra. Ou ainda, a possibilidade de visar algo ou alguém de um jeito e atribuir-lhe sinceramente uma cor, mas ao visar de outro modo, poder nitidamente atribuir-lhe outra cor: vide os inúmeros casos de inconsistências nas bancas de heteroidentificação.

No debate sobre a ideia de totalidade, algumas reflexões enfatizam a relevância de incluir o que está para além da figura e do fundo, enquanto excedentes. Explico: cada pessoa sabe que para além daquilo que vê no presente, ou mesmo do que poderá acessar ao longo de toda sua vida, há outras experiências que configuram, possivelmente, outras percepções muito diferentes daquela a que está habituado. Tais percepções outras indicam a existência de mundos da vida diversos coexistindo com o nosso. Outras realidades que fazem parte da totalidade mais ampla ainda que desconhecidas e inacessíveis. Ou seja, para além de um conjunto específico e identificável de relações entre figura, fundo e fronteira, desde a posição em que cada um está. Podemos falar aqui dos contrastes entre os mundos da vida de diferentes povos ao redor do mundo e da dificuldade de tradução entre línguas indígenas diversas, na medida em que muitos termos não encontram referentes em diversas línguas.

Cabe ainda, na reflexão sobre a totalidade, incluir a ideia de que desde uma posição excedente, é possível olhar para uma experiência e ver outras figuras, fundos e fronteiras que não são acessíveis desde a primeira posição. Os diferentes olhares não se complementam porque sequer visam a mesma coisa. Falo da transformação do mundo na medida em que as experiências são visadas desde perspectivas distintas. Por exemplo, quando indígenas e cientistas se referem a conhecimento, este termo aciona modos de perceber e se relacionar com algo muito distinto, que parecem não caber ou se encaixar facilmente um no outro, embora conhecimentos múltiplos coexistam e sejam pertinentes para diversos propósitos e pessoas. De um lado, a visada do conhecimento científico a partir das epistemologias indígenas dá inteligibilidade a muito do que a ciência não percebe sobre si mesma desde seu autoposicionamento. De outro lado, muitos indígenas se interessam pelos diálogos com os pesquisadores e buscam acessar a universidade, sem que isso implique a substituição ou tradução do conhecimento indígena pelo científico.

Por fim, considero importante que a universidade, enquanto abrigo de comunidades diversas de conhecimento (seu sentido original), possa valorizar a presença daquilo que é inteligível desde um ponto de vista funcional, mas sem eliminar as ambivalências, ambiguidades, contradições e excedências. Que os mundos da vida diversos, como os mundos indígenas, por exemplo, possam dialogar sem subordinar suas percepções a uma suposta correção acadêmica e científica. Que universalidade não se reduza a homogeneidade. E que generalidade não signifique exclusão. Que sejam assegurados os princípios de universitas e studium generale, pelos quais a totalidade das pessoas interessadas nos mais diversos conhecimentos são bem-vindas.

(*) Danilo Silva Guimarães, professor do Instituto de Psicologia da USP

 

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