A rotina sobre-humana de quem apaga um “inferno em chamas” por R$ 998
Campo Grande News passou 1 dia por dentro desse trabalho de combate que atrai gente com 20 anos que em breve não terá mais emprego
Às 11h na sexta-feira (13) em Corumbá, a 419 km de Campo Grande, o “coração” do Pantanal, o sol já está a pino em um céu que não brilha tão azul em razão da fumaça de incêndios. Na Rua Firmo de Matos, sede do Ibama, eles começam o dia. Arrumam os equipamentos enquanto engolem o almoço com extrema necessidade e preparam algum lanche ou “matula” para a viagem.
O trabalho dos brigadistas do Prevfogo (Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais) pode até ter hora para começar, mas certamente há dias em que não tem fim.
Um dos trabalhadores acessa o site do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais), checa o banco de dados sobre queimadas e tem que tomar difícil decisão: quais dos muitos incêndios serão prioridade do dia. São tantas e tão sérias as queimadas que, às vezes, decidir é quase às cegas: ainda que leve em conta o risco, é preciso “escolher o fogo do dia”.
O Pantanal queima. Um dos biomas, depois da Amazônia, que mais sofre com as chamas da estiagem de 2019. O fogo que causou crise política internacional não é, apesar disso, o mesmo fogo combatido pelos trabalhadores. Ali, o que importa não é a imagem que vai rodar o mundo - sem calor -, na rede social. O que importa é voltar vivo, e bem, para a casa.
Às 13h uma das equipes consegue sair de Corumbá. O destino é uma das muitas propriedades rurais pantaneiras. Quando se fala em Pantanal, fala-se em distância, muita distância. É por isso que as equipes acabam divididas: uma em caminhonete Hilux, outra em caminhão pequeno, que seguem para o mesmo destino por caminhos diferentes.
A equipe que seguia na Hilux ainda está na cidade, mas já consegue ver o fogo que deixou um fazendeiro assustado e acabou por pedir socorro aos brigadistas. As chamas e a fumaça colorem o horizonte de quem rasga o pantanal neste início de setembro.
O caminho é a BR-262 e ao segui-lo, a impressão é contrária da realidade: “olha, não é, assim, tão distante”. Pura ilusão. Ainda é “cedo” para falar em chegada ao destino.
Veja o percurso para chegar até a fazenda:
Na primeira tentativa, rodou-se por mais de 130 km, sem fazenda à vida. Passou Estrada Parque, Estrada da Manga, balsa. A sorte acabou por encontrar a brigada: uma das proprietárias estava no caminho. “Olha, vocês vão ter que ir pra BR-262 de novo para chegar na entrada da fazenda”.
O sol já desce o horizonte e começa a se por quando a equipe chega na entrada que dá acesso à propriedade. São 17h30 e o dia começa a virar noite. Por ali, vive-se no Pantanal extremo. A estrada é de terra, a mata é fechada e o silêncio da natureza é apenas interrompido pelo burburinho de quem tem urgência em não ver tudo virar cinzas.
Peões pantaneiros são os responsáveis por uma trilha improvisada e muito erma de, aproximadamente, 5 km para ter acesso à entrada do corredor de fogo. Antes de chegar até as chamas, é preciso realizar o ritual de proteção: vestir a roupa de segurança, colocar a bomba às costas carregada com 20 litros de água, a perneira (o perigo maior é o fogo, mas é preciso se lembrar das cobras), máscara nos olhos, toca balaclava, capacete e uma pequena lanterna. Depois de vestidos, desses seres humanos com idades entre 20 e 56 anos, só é possível ver os olhos.
Começa, então, a caminhada.
Quem assistiu a série de televisão Chernobyl – produto carregado de realismo que causou pesadelos em quem viveu na União Soviética durante o pior acidente radioativo da história -, consegue entender essa sexta-feira, dia 13 de setembro de 2019.
Na Ucrânia dos anos 1980, civis, pessoas comuns, foram praticamente obrigados a vestir a capa nacionalista dos soviéticos e mergulhar num caos do qual não se sabia se voltariam vivos: retirar o material radioativo da usina em chamas, cavar um túnel no calor infernal embaixo da terra para resfriar um reator.
No Pantanal onde o fogo selvagem toma conta, é quase a mesma história: é preciso ser mais que humano, é preciso ser, sim, sobre-humano, para dar os primeiros passos “firmes e grandes” em direção ao fogo do qual, não é exagero falar, pode-se não voltar com vida.
Entretanto, há entre as duas histórias, entre os dois territórios, entre as duas épocas, diferença primordial: os brigadistas do Prevfogo escolheram estar ali.
Esses jovens inexperientes e esses adultos com mais de meio século de vida escolheram doar-se quase que inteiramente por seis meses, por apenas 1 salário mínimo com a certeza de que, em janeiro, o desemprego bate à porta. Todos são corumbaenses e apenas dois são concursados.
A caminhada começa em trilha difícil quando a noite já tomou conta. É impossível ver o caminho em meio à fumaça e ao escuro. O silêncio é quase uma cerimonia, mas o trepidar das chamas no mato, nas árvores, nos galhos, vai aumentando, vai impondo medo e cuidado. O corpo vai cedendo à atmosfera, vai virando água: logo o suor toma conta por completo e já se está todo molhado.
Impossível é achar que o desespero não chega para quem não está acostumado: como andar sem enxergar, sem respirar com facilidade? Para esses trabalhadores de ocasião, que já viram cenários piores que esse, este caminho, ainda assim, é chamado de "fácil”.
“Olhe sempre para frente, dê passos largos e firmes para não tropeçar” são conselhos que não devem ser jamais esquecidos.
A borracha das botas gruda no pé e um facão é o instrumento que separa seres humanos de mata fechada. É preciso sempre estar atento ao vento, mensageiro do fogo selvagem que leva fagulhas que viram outros incêndios.
Vinte minutos depois chega-se a uma das imagens possíveis para descrever um inferno em chamas. Paradoxo da natureza, aquilo que se teme também se admira: fogo, árvores e noite formam um quadro de imagens muito bonitas. É hipnótico e difícil desviar o olhar desse quadro vermelho e negro.
O trabalho segue noite adentro onde é possível ver esses vultos incansáveis que se movimentam no meio da mata em chamas. Um coqueiro que pega fogo direciona o olhar que encontra incêndio quase no céu. É o olho, também, a única parte visível desse corpo - que precisa ser mais que humano -, a mostrar a exaustão desse trabalho.
Os 20 litros que cada um carrega na bomba nem sempre duram a missão inteira. É preciso de paciência, de não ter revolta em ter que fazer o mesmo difícil caminho de volta e pegar mais água.
O trabalho árduo, ainda assim, tem lá suas recompensas. É fácil esquecer que se está perto do coração selvagem do Pantanal quando é necessário temer o fogo além do que se vê. Não para eles: há tenha vivido em Corumbá sem nunca ter estado assim tão perto dessa tão amada planície alagável.
É ironia da vida que o fogo que pode destruir o Pantanal seja o ticket dos trabalhadores para conhecê-lo. Mas é assim que a maioria comemora a vida ao estar ali.
Ganham amigos, também, entre os fazendeiros. Isso porque muitas vezes dormem nas propriedades rurais, onde ganham espaço reservado, resultado da gratidão de quem não quer perder tudo para as chamas.
Alimentar-se quando se faz um trabalho que testa os limites do corpo é coisa muito séria. É preciso almoçar comida de verdade. Arroz carreteiro, arroz e feijão, carne. Mesmo porque, depois que entram na mata, não sabem quando vão comer de novo.
Não é possível ter uma conclusão exata sobre o que leva um jovem em seus 20 anos a largar um emprego na área de recursos humanos na cidade para entrar na mata escura que arde noite afora. Mas basta, às vezes, uma imagem na televisão para que a ideia tome conta de si. Deixam para trás família, conforto, vida social. É amor ao Pantanal? Ao país? Medo de que o fogo tudo consuma? Necessidade de deixar sua marca na história? Ter histórias para contar? Talvez seja tudo isso, talvez nada disso.
Não há nem tempo para tomar uma cerveja com os amigos durante os dias de fogo intenso, portanto a vida social praticamente desaparece.
O Prevfogo foi criado há 10 anos, mas até hoje apenas 1 mulher figura na história dos brigadistas. Juceli é o nome dessa corajosa que nem vive mais em Corumbá. As condições do trabalho explicam porque não há essa procura entre elas: imagine estar dia e noite no mato, onde não há banheiro, há muitos homens e onde o banho, às vezes, é no corixo, com um dos “companheiros” tendo que vigiar para que os outros não venham perto.
É de som e fúria que é feito esse trabalho. Mas, também, é feito de silêncios, de humildade, de voz que não se ouve, é invisível. Os brigadistas não são autorizados a falar, a ordem vem direto de Brasília.
O imenso clamor que tomou conta das redes sociais que acham que apenas a Amazônia existe no Brasil não chegou no Pantanal, onde não se viu, nesta sexta-feira 13, nenhum voluntário ou ong para ajudar os trabalhadores.
A volta para casa - O cenário é extremo, mas não chega nem perto dos piores incêndios combatidos por eles. É por isso que, apesar do corredor de fogo fechado no meio do pantanal, por volta das 20h a equipe já deixava para trás o incêndio controlado.
Mesmo sem equipamento, não se vê os rostos na noite, cobertos de sujeira. A roupa amarela mudou de cor. E logo vem a corrida em busca de água: para beber, lavar o rosto, lavar o corpo. Mas nessa noite a sorte escolheu esses trabalhadores: “hoje é sexta-feira, né? A gente podia sair”. O dever está cumprido. É preciso celebrar o hoje. Amanhã tem mais.
Números - Cada brigadista do principal grupo que atua no Pantanal já controlou fogo em 500 hectares na região de Corumbá, em pouco mais de 2 meses. O grupo já conteve 15 mil hectares desde junho, com atuação constante no local. Os 30 brigadistas do PrevFogo já combateram mais de 95 focos de incêndio em um raio de 200 km.
Confira o vídeo no interior da fazenda em chamas:
Confira a galeria de imagens: