Indígenas de Nioaque abrem aldeias para rota turística de ancestralidade
Comunidades conduzem visitantes por histórias, rituais e modos de vida contados por quem vive o território
Às margens da BR-060, próxima à Serra de Maracaju, a TI Nioaque (Terra Indígena Nioaque) inaugura um novo capítulo de sua história. Em um território marcado pela memória da Guerra do Paraguai (1864-1870) e pela resistência dos povos originários, surgem agora trilhas, vivências culturais e experiências guiadas pelos próprios moradores das cinco comunidades dos povos Terena e Atikum que compõem o território: Brejão, Água Branca, Taboquinha, Cabeceira e Vila Atikum.
RESUMO
Nossa ferramenta de IA resume a notícia para você!
A Terra Indígena Nioaque, localizada às margens da BR-060 em Mato Grosso do Sul, inaugura um novo capítulo em sua história com a implementação do etnoturismo. O território, que abriga 1.533 indígenas dos povos Terena e Atikum em cinco comunidades, oferecerá experiências culturais, trilhas e vivências guiadas pelos próprios moradores. O projeto NIOAC: Cultura & Turismo Indígena, desenvolvido com participação ativa das comunidades, inclui rituais, culinária tradicional, artesanato e banhos de rio. A iniciativa, que deve iniciar em 2026 após aprovação da Funai, visa promover autonomia financeira, proteção territorial e fortalecimento cultural das aldeias, que preservam 3.029 hectares de cerrado.
Com 3.029 hectares de cerrado preservados, a TI é margeada pelo Rio Urumbeva e morada de 1.533 indígenas. Hoje, a agricultura de subsistência e a relação direta com os recursos naturais sustentam a economia local, mas o etnoturismo aparece como possibilidade real de autonomia financeira, proteção territorial e fortalecimento cultural.
- Leia Também
- De jabuticaba a sorvete: o empreendedorismo indígena ganha força em Nioaque
- Cheias de atrativos, aldeias se prepararam para receber turistas em Nioaque
O cacique da aldeia Brejão, Ademar da Silva, lembra que a história do território é marcada pela luta. “A área era maior. Nossos limites eram os rios. As fazendas foram fechando e hoje há fazendas até depois deles”, diz o cacique ao acrescentar que havia moradias indígenas até no pé da Serra de Maracaju.
Ele recorda também que a região serviu de refúgio para soldados durante a guerra e foi base para o Exército Brasileiro, que montou no local duas enfermarias atrás da atual Escola Eugênio de Souza. O cacique afirma que já ouviu muitas histórias de seus ancestrais. “Houve perda grande de pessoas por malária e febre amarela. E muitos indígenas morreram também por conta da guerra.”
Com o turismo organizado, Ademar vê um futuro diferente. “Temos culinária rica, baru, rapadura, melado… Já recebemos gente de fora, mas nunca de forma organizada e planejada como agora. É uma oportunidade para todos nós.”
Etnoturismo - O projeto NIOAC: Cultura & Turismo Indígena nasceu das próprias comunidades, que participaram de reuniões, formações, planejamento e definição dos roteiros. Todo o trabalho foi coordenado pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) em parceria com a Prefeitura de Nioaque, a Fundação de Estado de Cultura e a Secretaria de Estado de Cidadania.
A partir do projeto, as decisões passam por um Conselho Gestor de Turismo, formado por lideranças indígenas, que garante operação comunitária, gestão compartilhada e preservação dos saberes tradicionais.
O território, dizem os moradores, além de ser espaço de vida, é também identidade. “O território não é só onde se vive; é quem se é”, afirma o material construído coletivamente e divulgado, sábado passado (29/11), durante o lançamento do plano de visitação de etnoturismo.
Ao visitante, o objetivo é oferecer experiências imersivas como rituais, culinária, memória oral, trilhas, espiritualidade, artesanato, banho de rio e histórias vivas.
Tradição e espiritualidade - Na aldeia Brejão, a primeira a ser fundada oficialmente na TI em 1904, o visitante terá um dia de espiritualidade Terena. A vivência começa com oficina de grafismo e segue por trilha até a antiga morada do finado Hermogênio, encerrando num banho no Rio Urumbeva.
O almoço é comandado por Dona Elza Lisboa, 72 anos, conhecida pela boa cozinha. Ela vai preparar carne com mandioca, arroz, feijão, charque com palmito e salada.
“Morar aqui é muito bom. Todo mundo se respeita. O rio deixa a casa fresca… é gostoso demais. Agora, com o turismo, vai entrar uma renda que ajuda nossa comunidade”, conta.
É no quintal de Dona Elza que o turista poderá tomar um banho de rio. A vivência termina com as danças da Ema e Putu Putu e um encontro de cura conduzido por Dona Hilda, benzedeira da comunidade, guardiã dos saberes sobre ervas.
Trilhas e histórias - Na aldeia Taboquinha, a visita começa com grafismo e uma trilha em homenagem ao ancião Airton Ojeda, seguida de banho no Urumbeva. O almoço, preparado por Dona Marilza, será o tradicional frango com pequi, fruto típico do cerrado.
A tarde segue com chás, histórias e artesanato com Tia Rita. A aldeia ainda oferece camping e passeios a cavalo por trilhas do cerrado.
Memória Terena - A Água Branca é o núcleo histórico-cultural do território. Ali, o visitante conhece o grafismo, apresentações culturais e o Centro de Memória.
O raizeiro Ramon conduz uma vivência com plantas medicinais e modos de uso. No almoço, a chef Vilma Fabiany serve refogado de coração de banana com carne.
Coordenadora-geral do turismo na aldeia, Fabiany Miranda Moreira, destaca um diferencial importante. “Nós vamos ter uma pousada com cinco quartos, sendo três suítes. Também teremos transfer para buscar o turista no aeroporto ou na rodoviária. Queremos que ele chegue com conforto e segurança”, afirma Fabiany ao ressaltar que a comunidade está muito animada e com a participação ativa de 48 moradores, inclusive crianças.
Dois povos - Uma outra experiência será oferecida em conjunto entre a aldeia Cabeceira, fundada em 1998, e a Vila Atikum, que reúne indígenas que migraram da Serra do Umã, em Pernambuco. O passeio no local oferece duas vivências complementares: a experiência Terena e a Atikum.
Na aldeia Cabeceira (Terena), o visitante tem acesso a rituais, grafismo, danças, arco e flecha, histórias ancestrais e almoço na casa de Dona Sabina. O dia se encerra com a famosa "pizza especial Terena", preparada pelo professor Thiago Souza, de 38 anos, liderança que também é pizzaiolo. A pizza de Thiago tem ingredientes diferenciados, com massa enriquecida com farinha de jatobá e de urucum.
Thiago fala com orgulho de sua ancestralidade. “A aldeia nasceu na nascente do Urumbeva. Minha avó, Dona Francisca, morou ali antes do vô Leôncio ir para a guerra. Ele teve a sorte de sobreviver à batalha e hoje dá nome ao anexo da escola. O etnoturismo vai trazer estabilidade financeira e fortalecer nossa cultura. É o que sempre sonhamos.”
Já na experiência Atikum, o turista ouve a narrativa da migração do Nordeste, seguida por dança e música tradicional, jantar típico com polenta, mungunzá, baião-de-dois e o tradicional Forró Atikum, conduzido pelas famílias.
Planejamento - Desde janeiro de 2025, a comunidade indígena participa de capacitação em primeiros socorros, atendimento, hotelaria, fotografia, manipulação de alimentos e segurança turística, além do Seminário Empretec oferecido pelo Sebrae.
O lançamento do plano de visitação marca o encerramento de uma consultoria conduzida ao longo de 11 meses, com participação de mais de 300 pessoas. Ele organiza diretrizes de governança, cultura, empreendedorismo, segurança e infraestrutura.
O próximo passo é a anuência da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), essencial para abertura oficial do destino ao mercado nacional e internacional. Por isso, as visitas começam, provavelmente, a partir de janeiro de 2026.
Para participar da imersão, a pessoa interessada precisa fazer agendamento prévio para visitação somente aos sábados, domingos e feriados.
Parceiros - Para o diretor-superintendente do Sebrae/MS, Cláudio Mendonça, esse é um momento transformador, pois o turismo nasce da própria comunidade, com a valorização da cultura e protagonismo local, fato que coloca essas aldeias no mapa do turismo de Mato Grosso do Sul.
O prefeito de Nioaque, André Bueno Guimarães, reforça que a iniciativa tem todo o apoio do município, uma vez que o etnoturismo difunde a cultura indígena, cria autonomia para as pessoas, além de gerar emprego e renda.
Origem - A Terra Indígena Nioaque fica a 200 km de Campo Grande e a 14 km do município de Nioaque. O nome da cidade já demonstra sua forte ligação com os povos originários, uma vez que vem do tupi-guarani Anhuac, que significa “clavícula quebrada”, referência a um dos rios que cortam o território e que, no século 19, foi cenário de batalhas e abrigo de soldados na Guerra do Paraguai.
O município, que tem 14 mil habitantes, carrega uma trajetória marcada pela resistência, pois foi invadido duas vezes durante a guerra e hoje preserva essa memória em monumentos como o canhão e o Memorial aos Heróis da Retirada da Laguna.
A TI nasceu de dois núcleos originais: a aldeia Brejão, fundada em 1904 pela família do “Capitão Vitorino”, e a aldeia Água Branca. Com o tempo, o território foi reorganizado em três aldeias. Conforme o pesquisador Claudionor do Carmo Miranda, em artigo publicado na revista Interações, a necessidade de reorganização do território partiu da dominação territorial exercida por grupos familiares, da disputa por poder interno e da necessidade de facilitar a gestão e a administração comunitária.
Os indígenas da TI Nioaque passaram por quatro períodos históricos. De acordo com o pesquisador, o primeiro foi no século 18, quando, pressionados por invasores espanhóis e conflitos interétnicos, deixaram a região do Chaco e tiveram de se reorganizar em novos territórios. O segundo veio com a Guerra do Paraguai, que quase dizimou o povo e deu início à “época da servidão”, quando indígenas foram obrigados a trabalhar de forma barata para fazendeiros que ocupavam suas terras.
O terceiro período começou com a criação das reservas, em 1904, que reduziu a autonomia das aldeias, enfraqueceu a autossuficiência e forçou maior integração à economia regional. Hoje, os Terena vivem um quarto momento, considerado o “Período de Libertação”, em que a busca por educação e conhecimentos externos se tornou estratégia de fortalecimento cultural, organização comunitária e luta pela recuperação do território tradicional.
Outras informações sobre a iniciativa podem ser encontradas no site do projeto NIOAC: Cultura & Turismo Indígena.
Receba as principais notícias do Estado pelo Whats. Clique aqui para acessar o canal do Campo Grande News e siga nossas redes sociais.









