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Comportamento

Natal de família, mesmo com 6 bolinhas e poucas luzes, vira atração da garotada

Na periferia, a decoração afetiva que transcende a estética faz as pessoas se sentirem especiais

Thailla Torres | 25/12/2018 07:06
Com apenas 6 bolinhas e um sino na janela, Rubi garante que é a decoração mais linda do bairro. (Foto: Kísie Ainoã)
Com apenas 6 bolinhas e um sino na janela, Rubi garante que é a decoração mais linda do bairro. (Foto: Kísie Ainoã)

Independente do dinheiro que há, na periferia de Campo Grande, sorrisos e histórias provam que a melhor decoração de Natal é aquela que faz as pessoas se sentirem especiais. Seja um filete de pisca-piscas, seis bolinhas na janela ou uma guirlanda inteira encontrada no lixo, o Natal vai muito além de uma data para vender ou comprar.

Até 2018, quando a calçada ganhou forma, as paredes o último reboco e o gramado ficou verdinho, a casa do pedreiro e líder comunitário Rogério Carvalho, de 31 anos, nunca havia recebido uma decoração de Natal, compatível com os sonhos de um pai que já foi menino e, hoje, vê no olhos da filha o encanto com as primeiras bolinhas vermelhas na janela. Seus vizinhos não foram contemplados com a mesma decoração. Apesar do apoio do líder comunitário, observa-se que para alguns o colorido tem pouca importância, para outros, uma bolinha a mais é um pão a menos na mesa de casa.

Decoração do pai alegrou a filha Rubi, de 5 anos. (Foto: Kísie Ainoã)
Decoração do pai alegrou a filha Rubi, de 5 anos. (Foto: Kísie Ainoã)

Por isso, durante o ano, Rogério repetiu um roteiro: trabalhou diariamente como jardineiro e pedreiro, pagou todas as despesas e guardou na memória o valor que precisava para decorar a fachada da casa, no Bom Retiro, área onde foram levados os moradores da extinta favela Cidade de Deus.

Conhecido pelos trabalhos sociais nos fundos de casa, Rogério pensou apenas em colocar bolinhas na janela. Mudou de ideia. "Lembrei que o pisca-pisca me encantava", diz. "Então resolvi pela primeira vez colocar as luzes no alto da casa", conta.

Durante o dia é difícil enxergar o efeito que a iluminação causa, mas na memória de Rogério, o primeiro dia de pisca-pisca nunca será esquecido. "Quando terminei a instalação e liguei, todas as crianças da rua vieram aqui na frente. Ficaram horas brincando na calçada e admirando as luzes", conta.

A filha Rubi, de 5 anos, mesmo na sua timidez, deixa escapar um sorriso largo que revela a admiração pelos enfeites do pai. O "sim" feito com a cabeça também confirma a beleza jamais vista. Recompensa que para Rogério não há dinheiro no mundo que pague. "Natal não é só festa, quero que elas [filhas] saibam o que é o renascimento da esperança".

Rogério, o líder comunitário que fez os olhinhos das crianças brilharem. (Foto: Kísie Ainoã)
Rogério, o líder comunitário que fez os olhinhos das crianças brilharem. (Foto: Kísie Ainoã)

De um lado, a admiração legítima da filha, do outro, o combustível para o pai enfrentar a realidade complexa da região, permeada por descasos, desigualdade social e violência. "Natal pra mim é a renovação da esperança, a poucos dias do Ano Novo. É quando eu peço que toda a dificuldade do ano fique para trás. Se eu não fizer a decoração, fica sem graça, sem fé", justifica.

O primeiro Natal da família no endereço foi em 2016, na casa inacabada, depois que uma forte chuva atingiu barracos de dezenas de moradores. "Naquele ano, entrar na nossa casa de alvenaria foi um presente, por isso, não sobrou dinheiro para comprar decoração".

Ano passado, o mesmo dilema. Rogério investiu o que tinha para terminar os detalhes da casa, inclusive, finalizar a varanda nos fundos que acolhe moradores do bairro para reuniões e ações sociais.

Mas neste ano, o brilho do pisca-pisca foi mais que especial. "A imaginação da criança é incrível, com uma simples luzinha ela acredita, desenha, pede o melhor para o Papai Noel, é uma forma da gente se livrar um pouco do que acontece de ruim".

Para o próximo ano, Rogério planeja iluminar as janelas e inspirar a vizinhança. "Muita gente não faz por que não se importa, mas tem gente que é assalariado ou está desempregado, então a conta não fecha. Se comprar um enfeite, pode faltar um leite ou pão na mesa".

Parte da árvore de Natal foi montada com enfeites encontrados no lixo. (Foto: Kísie Ainoã)
Parte da árvore de Natal foi montada com enfeites encontrados no lixo. (Foto: Kísie Ainoã)

A duas quadras da casa de Rogério, encontramos a gentileza de Cláudio e Lucinda, companheiros na vida e no amor há 6 anos, que comemoram o terceiro ano de casa enfeitada com parte das decorações encontradas no lixo. O casal é catador de recicláveis e se orgulha de mostrar a decoração que dá tom à magia em novembro. "Eu  faço questão, porque sem enfeite não tem Natal", diz Cláudio Macena da Silva, de 36 anos.

O interior da varanda revela uma árvore cheia. Bolinhas, presentinhos, sinos, luzes natalinas e uma enorme estrela dourada transformam o ambiente. Ainda na varanda, uma guirlanda de saco de estopa e lacinho vermelho é outro mimo. Do lado de fora, o destaque fica por conta dos penduricalhos e mais luzes natalinas, compradas por Cláudio com o dinheiro da reciclagem.

Tamanha conquista só foi possível na vida adulta, conta o catador. "Tive uma infância muito difícil, no meio do mato, debaixo do sol, onde não tinha como saber o que era Natal", resume sem contar detalhes da vida no Pernambuco, deixada há décadas.

Depois de uma infância difícil, Cláudio não abre mão dos enfeites. (Foto: Kísie Ainoã)
Depois de uma infância difícil, Cláudio não abre mão dos enfeites. (Foto: Kísie Ainoã)

Sorridente, são 6 anos tentando resgatar a magia do Natal que marcou infância, conta a peruana Lucinda Rosa Torres Pacheco, de 47 anos, que graças ao marido, renova as energias e as esperanças com a nova decoração. "Aqui no Brasil é muito diferente do Peru, lá todas as ruas são enfeitadas, é aquele colorido que eu vejo por aqui".

Lucinda também fala pouco sobre os motivos que a fizeram largar o Peru. Mas explica cada enfeite traz alivia também a saudade de casa, da família e das ruas de Lima. "Não estou perto da minha família, mas eles também amam o Natal, isso significa muito pra mim".

O que Rogério, Cláudio e Lucinda tem em comum? Uma sensibilidade que dinheiro não compra, capaz de trazer o Natal para dentro de casa do jeito mais simples e cheio de afeto.

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Casa também se destaca no Bom Retiro, área onde foram levados os moradores da extinta favela Cidade de Deus. (Foto: Kísie Ainoã)
Casa também se destaca no Bom Retiro, área onde foram levados os moradores da extinta favela Cidade de Deus. (Foto: Kísie Ainoã)
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