Comunidades quilombolas lutam para preservar a história e sobreviver ao futuro
Governo deve criar este ano divisão para agilizar titulação e quilombolas ainda precisam de direitos básicos
“O que representa a comunidade quilombola para você?”
“Tudo”. “Irmandade”. “Família”. “União”. As respostas dadas por moradores dessas localidades, com pequena variação no significado, são o principal legado deixado pelos antepassados que vieram ao Estado em busca de uma nova vida.
Passados pouco mais de 150 anos da chegada dos negros que formaram as comunidades quilombolas em terras sul-mato-grossense, o Campo Grande News percorre esse locais para contar histórias e falar sobre dívida histórica com os descendentes, que lutam para vencer a morosidade da burocracia para concluir a posse das terras, e ainda clamam por direitos básicos, como educação, acesso à saúde e saneamento básico.
O sentimento de pertencimento é o mais latente entre as pessoas ouvidas pela reportagem que, durante uma semana, visitou sete comunidades quilombolas em cinco cidades de Mato Grosso do Sul, o que será mostrado em série de reportagens publicadas a partir de hoje.
Em Mato Grosso do Sul, 22 comunidades quilombolas são certificadas pela FCP (Fundação Cultural Palmares). A medida respeita o direito à autodefinição e facilita o acesso às políticas públicas voltadas para a população negra.
Porém, no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), apenas quatro contam como “parcialmente titulada”, ainda com situações pendentes como “aguardando sentença”, “perícia judicial” ou “indenização de quilombolas”: Furnas do Dionísio (Jaraguari), Furnas da Boa Sorte (Corguinho), Chácara do Buriti (Campo Grande) e São Miguel (Maracaju).
O superintendente do Incra em MS, Paulo Roberto da Silva, disse que o governo federal irá criar divisão específica para agilizar a titulação das terras quilombolas no Estado.
“Em um primeiro momento, o foco é legalizar o território, mas, além disso, possibilitar que essas comunidades possam acessar as políticas públicas”, disse Paulo Roberto, acrescentado que isso deve auxiliar na expansão da produção agrícola, a comercialização dos produtos e organização de feiras para a venda desses itens e do artesanato.
Porém, ainda não há data prevista para a criação dessa divisão, apenas, que deve ser ainda para o início deste ano. Atualmente, apenas um servidor do instituto trabalha diretamente nos interesses das comunidades quilombolas. No geral, o Incra trabalha com déficit de cerca de 100 funcionários, este, o mínimo ideal para lidar com a questão fundiária que inclui os trabalhadores rurais de acampamentos e assentamentos.
Invisibilidade – A história da vinda dos negros para o território, ainda no Mato Grosso uno, começa antes da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, segundo várias publicações que estudam a história da formação das comunidades em MS.
Os mais antigos contam da vinda dos antepassados de Minas Gerais e da Bahia, alguns fugitivos do sistema escravocrata no Brasil e, em anos subsequentes, ex-escravizados que vieram em busca de melhores condições de vida.
Muitos receberam terras doadas pelos coronéis, pelos serviços prestados, áreas que não eram cobiçadas pelos grandes senhores por não serviram aos seus projetos agrários: as furnas, do latim “furnus”, que significa forno. A formação geológica é de uma cavidade ou abertura natural entre rochas ou montanhas. Em MS, no fim do século XIX, eram regiões pouco habitadas e de dificílimo acesso. O carro de boi levava semanas para chegar à Campo Grande. Hoje, mesmo com veículos motorizados, o acesso ainda é difícil, principalmente quando chove.
Mas também há outros tipos de comunidades quilombolas, reconhecimento que vai além de mapeamento cartográfico, como explica o professor do IFMS (Instituto Federal de Mato Grosso do Sul) João Batista Alves de Souza. São os “sinais de resistência” que se apresentam na produção agrícola de hortaliças, nas feiras livres, nas manifestações culturais, nas danças tradicionais e na religiosidade de matriz africana.
“A não titulação os torna invisibilizados”, disse o professor. “As comunidades estão em vulnerabilidade social e muitas sofrem com a ausência de políticas públicas, explica o professor João Batista de Souza
Segundo João Batista, o reconhecimento pela Fundação Palmares foi um grande avanço, mas, ainda não é suficiente. “Dou como exemplo que é como se fosse o caso de alguém que financia o imóvel, mas não tem garantias da posse”.
A professora e presidente do Grupo Tez (Trabalho Estudos Zumbi), Bartolina Ramalho Catanante, explica que muitas comunidades ainda enfrentam o conflito agrário. São casos da venda ilegal de terras, feita por descendentes, por vezes enganados na negociação, e até invasão de fazendeiros vizinhos aos quilombolas. A titulação definitiva é forma de resolver de vez os embates pela posse da terra.
O que foi dito pelos entrevistados foi constatado pelo Campo Grande News. As terras fazem parte da história de vida de muitos quilombolas, assim como a luta pela preservação da cultura, da religião, do artesanato e da agricultura. As comunidades também enfrentam o desafio de manter a tradição entre os mais jovens, que também olham para o futuro em busca de melhores condições de vida.
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