A pesquisa que envolve arte e ciência
“A coisa mais bela que o homem pode experimentar é o mistério. É essa emoção fundamental que está na raiz de toda ciência e toda arte.” Albert Einstein.
Pelo olhar da descoberta, arte e ciência são campos com profundas interações. Sob essa perspectiva, a oposição entre arte e ciência na qual a primeira é relacionada à “criação” e a segunda à “compreensão das leis da natureza” é superficial e incompleta. Iniciamos, assim, nossa reflexão, dedicando atenção aos conceitos que giram em torno da concepção de arte e ciência, e observando especialmente o acervo de ideias que trata sobre suas aplicações e interações.
Num primeiro plano de análise, devemos nos atentar aos significados dos termos arte e ciência. A palavra arte é uma derivação da palavra latina ars ou artis, correspondente ao verbete grego tékne. O termo tékne se traduz na criação, fabricação ou produção de algo. A arte, no sentido amplo, significa o meio de fazer ou produzir alguma coisa.
Aqui, vale ressaltar que a arte não se encontra na natureza, mas no mundo das ideias e da razão. Ela acontece somente pela intervenção humana. Por ser uma forma de conhecimento, adota discurso subjetivo, ou seja, não se propõe a ser “a verdade” e não fornece explicações universais. Muitas vezes, propositalmente, constrói representações da realidade inexatas, imprecisas e indiretas. Propõe métodos e técnicas, mas também abre espaço para a espontaneidade e o acaso. Isenta de discursos definitivos sobre a realidade, seus enunciados são abertos às diversas interpretações; a partir do uso da imaginação, convoca os sujeitos para a produção de diferentes representações daquilo que lhes é apresentado.
Já a ciência provém da palavra scientia (do latim = conhecimento) e refere-se a saberes e/ou práticas ordenados que observam a regularidade, preveem e controlam fenômenos, ou seja, a ciência está relacionada ao sistema de aquisição de conhecimento baseado por um método. De um conhecimento difuso, assistemático e desorganizado, passa-se a um trabalho de arranjo segundo certas relações e disposições metódicas. Esse processo é fundamental para a composição de campos específicos do conhecimento. O método científico é, sobretudo, fundamentado na observação, na experimentação e na produção de teorias e leis que são permanentemente testadas, objetivando sua comprovação ou substituição por outras teorias e leis que possam resistir à checagem.
Diferentemente da arte, a ciência pressupõe o controle, a objetividade e a lógica. Seu discurso é definitivo somente até que se prove que não corresponde mais à realidade circundante.
Desse modo, arte e ciência são ramos do conhecimento que envolvem aquisição de repertório, de técnicas e de métodos, ou seja, são formas de conhecer que ultrapassam o “dar-se conta de” e seguem para apreensões e interpretações do mundo ao redor, envolvendo sujeito (aquele que quer conhecer) e objeto (a “coisa” a ser conhecida). Entre arte e ciência, a tecnologia surge como ferramenta de ambas. Sendo o conjunto de práticas e saberes sobre esses dois campos teóricos, pode ser definida também como o estudo e o processo de métodos empregados para a transformação e o domínio do meio.
Num segundo plano de análise, deve-se considerar que artistas e cientistas são marcados por seu contexto histórico e social; eles transitam entre a imaginação, as indagações sobre fenômenos e as experimentações. O ato de criação é a sustentação da arte e da ciência e, nesse exercício, o cientista não se diferencia do artista; eles somente trabalham materiais diferentes do Universo. Então, no ato de criação está a origem comum da ciência e da arte. Nessa ação, ocorre a abdução ou a capacidade de formular hipóteses, imagens, ideias, problemas e métodos.
O eixo básico da atuação para cientistas e artistas é o processo criativo. E esse, por sua vez, é a necessidade de se achar respostas às experiências que a vida proporciona; é a ação de solucionar problemas, ou ainda, a capacidade de adaptação a necessidades predeterminadas. As questões que motivam soluções artísticas e científicas podem ser diversas e de natureza variada, porém, não se pode discutir que ambas são respostas individuais geradas pelas condições histórico-sociais – juntas manipulam a realidade e dão respostas à vida.
Muitas vezes, arte e ciência surgem entrelaçadas às motivações religiosas, filosóficas, ideológicas e/ou ligadas ao poder. As grandes construções egípcias, gregas, romanas e medievais, por exemplo, surgem graças ao desenvolvimento de novos materiais, técnicas e tecnologias – esses monumentos constituem verdadeiras epistemologias relativas às culturas que os edificaram. Neles, as crenças e valores sociais mais caros à sociedade são espelhados, assim como as relações econômicas e políticas. Observemos as pirâmides – sem o emprego da tração animal ou das rodas –, são o resultado de técnicas criativas e cálculos matemáticos que permitiram o transporte e uso de toneladas de pedras. Elas ainda trazem em seu interior decorações, pinturas e esculturas votivas que narram histórias e mostram os padrões religiosos e estéticos que orientam aquela sociedade.
Durante milhares de anos, a humanidade produziu arte e ciência sem que se distinguissem diferenças entre as duas formas de conhecimento (ou até mesmo sem a necessidade de nomeá-las, como “arte” e “ciência”). A distinção desses ramos do conhecimento é um fenômeno moderno que se inicia a partir do século 15. Não há uma data ou lugar exato para essa distinção, mas entendem-se que os métodos de Galileu, por exemplo, já compreendem uma série de procedimentos para testar criticamente e selecionar hipóteses e teorias para explicar a realidade. Sendo assim, entende-se que, gradativamente, surge o projeto científico orientado e marcado pelo racionalismo de Descartes e pelo empirismo de Bacon e Galileu.
O matemático Gérard Fourez nos ensina que: “Não se ‘observa’ do mesmo modo um neutrino, um micróbio, uma cratera sobre a Lua, uma nota de música, um gosto de açúcar ou um pôr-do-sol”.
Sob essa lógica, o projeto racional-científico proporciona um acúmulo de conhecimentos, teorias e métodos, que vão exigindo separações, tratamentos diferenciados e posturas específicas.
Deixando de lado a pretensão de “saber tudo”, alguns estudiosos dedicaram-se a “saber muito” sobre determinado tema, impulsionando, assim, o desenvolvimento das especialidades científicas.
E hoje, temos diversos especialistas e pouca formação universalista. Na batalha entre o particular e o universal, privilegia-se a parte em detrimento do todo. A partir desse processo, temos a disciplinarização do conhecimento e o que distingue e limita as áreas torna-se mais forte do que as relações interdisciplinares, ou seja, os pontos de convergências entre os saberes. Segundo o filósofo Edgar Morin, “(…) originalmente, a palavra ‘disciplina’ designava um pequeno chicote utilizado no autoflagelamento e permitia, portanto, autocrítica; em seu sentido degradado, disciplina torna-se um meio de flagelar aquele que se aventura no domínio das ideias (…)”.
Porém, retomamos o século 15 que também abrigou personagens como Leonardo Da Vinci, que congregam arte e ciência nos seus estudos e procedimentos. Para Da Vinci, arte e ciência possuem métodos e processos análogos – todos dependem do inquérito do olhar. A criatividade é a chave para as duas formas do Saber. Ambas podem descobrir “novos mundos”, criar e ampliar fronteiras de conhecimento e de autoconhecimento, pois quando há uma “descoberta” sobre a natureza o homem acaba por conhecer sua própria essência. Nesse ponto, é muito importante ter em mente que a distinção contemporânea entre arte e ciência é ininteligível para Leonardo. Essa distinção sequer existia na época na qual a “medicina” ou a caça são consideradas uma “arte” e a pintura ou a escultura poderiam ser chamadas de “ciência”. É claro que, dentro das convenções renascentistas da pintura, qualquer ampliação da liberdade de criação que se chama de “arte” exigia uma igual intensidade de estudos que, hoje, designamos como “científicos”.
Assim, as relações entre arte e ciência têm como pano de fundo a interdisciplinaridade, ou seja, a superação das fronteiras disciplinares. Mantém-se aqui a ideia de construção do conhecimento que emprega o que as disciplinas têm em comum, através da síntese de saberes ou do estabelecimento de uma linguagem compartilhada. Observam-se as trocas entre as disciplinas, nas quais instrumentos, métodos e esquemas conceituais são integrados e servem à “descoberta do mundo”.
Nesse percurso, percebe-se que as descobertas e as novas formas de “ver e estar” no mundo impulsionam as interações entre arte e ciência. Longe de uma trilha linear e definitiva, o olhar interdisciplinar sobre os fenômenos da história, da natureza e da vida nos faz tecer relações voltadas à construção do conhecimento passível de muitas abordagens e leituras. Porém, não aguardem uma discussão sobre história da arte linear, pronta e acabada: o percurso sempre está em construção, permitindo a inclusão de relações adjacentes e novos questionamentos. No exercício que envolve arte e ciência, a pesquisa sobre os artistas, seus contextos e, sobretudo, a leitura orientada de seus trabalhos é ferramenta relevante.
(*) Alecsandra Matias de Oliveira é professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.