As decisões de Alexandre de Moraes e o futuro do sigilo bancário no Brasil
Na semana do dia 20 de agosto de 2025, duas decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chamaram atenção do meio jurídico ao suspender, em todo o país, os processos que envolvem a requisição de relatórios de inteligência financeira (os chamados RIFs) produzidos pelo COAF, quando solicitados pelo Ministério Público ou pela polícia sem ordem judicial.
Mas o que está em jogo? os sigilos bancário e fiscal assegurados a todos na Constituição. O debate é técnico, mas tem implicações práticas e relevantes. O STF agora terá que decidir, em caráter definitivo, se o Ministério Público pode ou não requisitar ao COAF os dados bancários e fiscais de pessoas investigadas sem ordem judicial prévia. A discussão está no centro do julgamento do Tema 1.404 da Repercussão Geral, que deverá fixar, com força vinculante, os limites do poder investigativo sobre o sigilo financeiro.
O COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), também conhecido como Unidade de Inteligência Financeira (UIF), é um órgão vinculado ao Banco Central que atua no combate à lavagem de dinheiro. Ele não é um órgão investigativo de apoio do Ministério Público ou da Polícia Federal, mas uma autoridade administrativa autônoma e independente com função de inteligência.
Seu papel é receber comunicações de movimentações financeiras suspeitas, feitas obrigatoriamente por bancos, corretoras, cartórios, imobiliárias, joalherias, entre outros setores, conforme previsto na Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98). Essas informações são analisadas com base em padrões de suspeição (como saques ou depósitos em espécie em valores elevados) e transformadas nos chamados Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs).
Esses RIFs são enviados, de forma espontânea, aos órgãos de persecução penal (como Polícia Federal e Ministério Público) quando o COAF identifica indícios de crime, conforme determina o artigo 15 da Lei nº 9.613/98. O ponto central da discussão, no entanto, não está nesse compartilhamento espontâneo (que é claramente autorizado pela lei), mas na possibilidade de o MP ou a polícia requisitarem diretamente esses relatórios sem autorização judicial prévia.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, garante como direito fundamental a inviolabilidade dos dados pessoais, incluindo dados bancários e fiscais. O inciso XII do mesmo artigo é taxativo: só pode haver quebra do sigilo de dados mediante ordem judicial. Esse entendimento é reforçado pela Lei Complementar nº 105/01, que, no § 4º do artigo 1º, afirma que a quebra de sigilo só pode ocorrer com autorização judicial, em caso de investigação de crimes graves.
Além disso, o Código de Processo Penal, após a reforma do pacote anticrime (Lei nº 13.964/2019), estabelece que cabe ao juiz das garantias decidir sobre o afastamento dos sigilos fiscal, bancário e de dados, nos termos do artigo 3º-B, inciso XI, alínea "b". Logo, polícia e MP podem acessar dados bancários ou fiscais, contanto que exista autorização judicial. Isso coloca em xeque a prática (cada vez mais comum) de requisições diretas ao COAF, sem o controle de legalidade prévio do Poder Judiciário.
A 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), responsável por uniformizar a aplicação da legislação federal no país, foi contundente ao definir o seu posicionamento de que é ilícita a solicitação direta de RIFs pelo Ministério Público ou pela polícia sem ordem judicial (RHC 196.150/GO). A decisão reafirma que os dados constantes nos RIFs (que incluem extratos bancários, movimentações financeiras, transferências, saldos e até dados fiscais) são protegidos por sigilo constitucional e, por isso, precisam de prévia decisão judicial fundamentada para serem afastados.
O Supremo Tribunal Federal está dividido sobre o tema. De um lado, a 1ª Turma tem decisões entendendo ser possível o Ministério Público ou a polícia requisitarem diretamente os relatórios do COAF, mesmo sem autorização judicial, desde que exista uma investigação formal em andamento. De outro lado, a 2ª Turma possui decisões que não permitem essa solicitação direta dos RIFs sem a autorização prévia de um juiz. Ou seja, a própria Corte ainda não tem um entendimento único sobre até onde vai o poder das autoridades de investigação no acesso a dados bancários e fiscais.
A controvérsia será resolvida no julgamento do Tema 1.404 da Repercussão Geral, cujo relator é o Ministro Alexandre de Moraes, autor das decisões que suspenderam os processos sobre o tema em todo o Brasil. A decisão terá impacto direto sobre inquéritos, ações penais e medidas cautelares. A depender do que for decidido, provas poderão ser invalidadas ou, ao contrário, legitimadas mesmo quando obtidas sem autorização judicial.
O compartilhamento de dados bancários e fiscais não é um ato trivial. Trata-se de uma das mais invasivas medidas do processo penal, e como tal, deve respeitar os mesmos parâmetros legais das buscas domiciliares, buscas pessoais ou interceptações telefônicas, que só podem ocorrer com ordem judicial prévia.
É exatamente por isso que o Supremo Tribunal Federal precisa fixar critérios objetivos e restritivos para o compartilhamento de RIFs com os órgãos de persecução penal. Mais do que uma discussão técnica, o que está em jogo é a garantia de que ninguém terá afastado o sigilo constitucional de sua vida financeira sem o mínimo controle judicial prévio.
Concluir que a exigência de autorização judicial atrapalha o combate ao crime é uma linha de raciocínio perigosa para qualquer Estado Democrático de Direito. Isso porque, se aceitarmos esse argumento, estaremos abrindo espaço para relativizar outras garantias constitucionais mínimas sob a justificativa de que elas atrapalham investigações. Esse é um caminho que, uma vez trilhado, é difícil de retornar.
(*) Márcio Widal é advogado e professor de Processo Penal
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