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Dourados, seus indígenas e o ensino da história indígena nos espaços escolares

Por Kleber Gomes (*) | 08/09/2025 13:30

Recentemente fui convidado pelo professor mestre Luciano Alonso para auxiliá-lo em suas aulas de História. Pelo segundo ano, temos a oportunidade de sermos professores desse importante componente curricular na mesma escola, a Municipal Professora Arlene Marques Almeida, no bairro Jardim Canguru, em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.

O convite foi aceito, para que pudesse trabalhar com três turmas de nono ano do ensino fundamental atendidas pelo professor Luciano. O desafio lançado foi falar sobre "A Marcha para o Oeste na Era Vargas" e a "Criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND)".

Tratar dessas duas temáticas remete-nos a refletir sobre o pouco que ainda é falado de como, de fato, foi a chegada dos colonos não indígenas à região da então parte sul do Mato Grosso e as consequentes ações de violência contra os povos originários que habitavam estas terras no final do século XIX e início dos anos 1900.

Para um melhor entendimento é necessário pensar esse período em três momentos, afinal, uma análise mais atenta a respeito desse recorte temporal contribui em muito para o entendimento, não somente dos estudantes, como também do país, daquilo que explica o atual momento vivenciado pelos Guarani e Kaiowá no sul do hoje estado do Mato Grosso do Sul.

Primeiro momento: a inverídica informação a respeito dos vazios demográficos do oeste

O primeiro momento tem a ver com os anos logo após o final da Guerra do Paraguai (1864-1070). No planejamento das aulas e na execução das mesmas, pude falar um pouco a respeito do que significou a chegada dos não indígenas a essas terras, trazer à sala de aula informações daquilo que os governantes do Brasil do final do século XIX chamavam de "espaços vazios".

Na ocasião, houve a intenção do "Governo Federal" de ocupar esses espaços, os quais eram, à época, propagandeados como regiões de demografia zero e locais de oportunidades para o progresso e desenvolvimento do Império. Na verdade, os ditos "espaços vazios" eram territórios ocupados há milhares de anos pelos Guarani e Kaiowá. Assim, os povos originários eram o obstáculo que os não indígenas tinham à sua frente para o avanço de suas pretensões imperialistas.

A Companhia Matte Larangeira ganhou a concessão de explorar essas terras no ano de 1882. Os indígenas locais dominavam as matas e as técnicas de extração da erva-mate e foram "atraídos" por aquilo que a empresa oferecia. Esses indígenas rumaram aos acampamentos da empresa e passaram a ser explorados.

A história dos ervais, então, foi escrita com suor, exploração e resistência dos indígenas. No ciclo da erva-mate, o produto dos campos era exportado para a Argentina, fruto do peso de jornadas exaustivas e de uma escravização disfarçada de contratos de trabalho. Nesse primeiro momento não houve conflitos.

A Companhia Matte Larangeira foi sinônimo, comprovado por estudos, pesquisas e a recuperação de relatos e documentos da época, de continuidade da escravização de pessoas, uma forma desumana e degradante a qual foram submetidos os Guarani e os Kaiowá. Esse trabalho foi a base para a extração da erva mate e a produção de vultosas riquezas àqueles que tinham a concessão do governo para tal.

Passados os anos, surgiram os primeiros conflitos pelas terras, isso paralelamente ao fim do ciclo ervateiro logo no início dos anos 1900. Por meio da produção da erva mate, houve um "boom" populacional na região e os não indígenas começaram a reivindicar a posse das terras.

Segundo momento: a criação das reservas indígenas no sul do então Mato Grosso

Chegamos agora ao segundo momento de nossa análise histórica, esse ligado à criação das reservas indígenas no sul do então Mato Grosso. Em meados da década de 1910, colonos começaram a ocupar a região, um dos resultados do ciclo ervateiro que durou na região por aproximadamente três décadas. As reservas indígenas instaladas foram a de Amambai (1915), a de Dourados (1917), a de Caarapó (1924), a de Pirajuí (1928), a de Porto Lindo (1928), a de Sassoró (1928) e a de Taquaperi (1928).

As reservas eram áreas distantes dos territórios originais dos Guarani e dos Kaiowá e sem nenhuma ligação com as terras ancestrais desses povos. Meios de atração foram criados pelo governo, tais como assistência médica. Quem não ia de forma espontânea era levado à força. O objetivo era confinar os indígenas a pequenos espaços de terras e liberar aos colonos as terras maiores.

Nessas novas terras, os indígenas foram incentivados a desenvolverem práticas de agricultura nos moldes capitalistas. Houve desmatamentos enormes na região. Os conflitos foram sangrentos, pelos quais vários indígenas eram espancados e mortos, aldeias destruídas, casas queimadas e famílias inteiras expulsas de suas terras.

Criadas pelo antigo Sistema de Proteção ao Índio (SPI), as reservas se constituíam como uma espécie de abrigo transitório. O governo brasileiro decidia orientado pela ideia de que os povos indígenas desapareceriam, ao serem assimilados pela sociedade nacional. Houve também o fato de os indígenas serem conduzidos a essas reservas para sua catequização.

O tempo presente acaba por ser explicado por aquilo que ocorreu no passado. As reservas, juridicamente e na prática, quando comparadas às terras indígenas, possuem grandes diferenças. As terras indígenas devem garantir a sobrevivência dos povos originários e de suas culturas, com espaço suficiente para tal, seguindo-se o dever do Estado brasileiro na demarcação dos territórios, algo estabelecido pela Constituição Federal de 1988. No caso das reservas, não houve esse compromisso.

Em tempos atuais, a Reserva Indígena de Dourados (RID) não dispõe de espaço capaz de garantir o cultivo de alimentos a todos os seus moradores. Ao buscar terras para plantio, grupos guarani e kaiowá deixam a reserva e se estabelecem nos entornos, nas chamadas áreas de retomada, as quais são acampamentos improvisados, estes montados em territórios de ocupação tradicional.

A história recente demonstra que, ao chegar nesses locais, os indígenas tornam-se vulneráveis a ataques dos não indígenas. Não sem razão, muitos estudiosos, pesquisadores e analistas dizem haver na região de Dourados uma crise humanitária vivenciada pelos indígenas.

O terceiro momento: o início da Era Vargas e a criação da CAND

E, por fim, o terceiro momento é o relacionado à chamada "Marcha para o Oeste" capitaneada  pelo Presidente da República Getúlio Vargas, logo após a sua tomada de poder no início da década de 30. Esse momento também tem ligação com a criação da CAND, no mesmo ano da instalação do Território Federal de Ponta Porã, em 1943.

Por meio da criação do Território de Ponta Porã, houve um enorme incentivo da parte do governo federal para que esses espaços locais fossem colonizados, por meio de uma política não voltada para a garantia do desenvolvimento social dos migrantes e nem para a defesa dos indígenas locais. Essa colonização da região via "Marcha para o Oeste" significou, na prática, relocações desses povos de forma arbitrária, algo comprovado e com reflexos nos dias atuais.

A criação da CAND passou a ser considerado o ponto crítico de todo esse processo vivenciado pelos indígenas desde o final do século XIX. Seguindo a política desenvolvimentista do Presidente Getúlio Vargas, esta colônia promoveria a agricultura de pequeno porte e contribuiria na ocupação da região.

No decreto de instituição da CAND, não houve nenhuma menção às comunidades indígenas, embora o governo federal tivesse conhecimento, algo comprovado pelos diversos depoimentos de pessoas que viveram à época, de que as terras destinadas aos colonos não indígenas eram ocupadas pelos Guarani e Kaiowá.

Houve a tentativa de jogar a existência desses povos por baixo do "tapete de desenvolvimento e progresso" que foi lançado sobre a região, ao ponto de muitos até hoje dizerem que essa foi primeira reforma agrária que deu certo no Brasil.

Nesse terceiro momento, inúmeros indígenas foram assassinados em confrontos com colonos. Muitas comunidades guarani e kaiowá foram dispersas, indo para as reservas, para fundos de fazendas ou se refugiando em matas. Vários relatos de indígenas expulsos de suas terras, em nome dessa colônia que recém havia sido instalada na região, informaram sobre o uso de armas de fogo pelos não indígenas que, a todo custo, inclusive com o derramamento de sangue, viam os povos originários novamente como um obstáculo aos seus interesses particulares.

Esse terceiro momento ainda é pouco conhecido nos espaços escolares locais e precisa ser incluído nos planejamentos dos professores, quando de suas aulas a respeito da cultura e da história dos povos indígenas, em especial aos conteúdos relacionados ao presente e passado dos Guarani e Kaiowá da região sul de Mato Grosso do Sul.

Inclusive, a história da criação do município e da cidade de Dourados necessita ser revisada, para que mais luzes sejam lançadas ao que de fato ocorreu nos primórdios do encontro dos não indígenas com os indígenas na virada do século XIX para o XX.

Considerações Finais

Falar sobre a história indígena em Dourados é também lembrar a situação de passado e de presente dos povos originários pertencentes à região sul do atual estado de Mato Grosso do Sul.

Tive a oportunidade de morar na RID, isso no ano de 1994. Essa vivência in loco pôde reforçar aquilo que ensino aos alunos a respeito dessa reserva e sobre aquilo que os povos originários vivenciaram e ainda vivenciam hoje no Brasil na luta por seus territórios. Conheci entre os Guarani e os Kaiowá, irmãos nossos, aos Terena, que possuímos escritas de existência e de resistência com características semelhantes, no enfrentamento às tentativas realizadas pelo não indígena do apagamento completo de nossas histórias, culturas e costumes.

O clima de violência constante na região sul de Mato Grosso do Sul é reflexo, em grande parte, da decisão tomada pelo governo brasileiro há pouco mais de 100 anos, a criação de reservas indígenas hoje bem populosas, algo extremamente contrastante com sua extensão territorial. Por exemplo, a RID possui atualmente em torno de trinta mil habitantes em pouco mais de três mil hectares.

Nos espaços escolares, falar dos povos originários do sul de Mato Grosso do Sul e das demais localidades do Brasil é algo urgente, por meio de material que traga uma análise clara, criteriosa e verdadeira daquilo que ocorreu e que ainda ocorre com os povos originários do Brasil.

(*) Kleber Gomes é indígena terena e mestre em Ensino de História pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

 

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