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Diálogos que doem: a gramática da masculinidade tóxica

Por Beatriz Daruj Gil (*) | 01/06/2025 13:30

Combinações (des)combinadas na língua

Costumamos ensinar crianças, adolescentes e jovens, na educação básica e no ensino superior, que, ao compor uma expressão linguística, é preciso empregar as palavras com propriedade. Mas o que entendemos por propriedade? Helênio Fonseca de Oliveira, linguista e professor aposentado da Universidade Estadual do Estado do Rio de Janeiro, propõe compreendê-la por seu contrário – a impropriedade: o uso da palavra em contexto inadequado, que resulta em uma sequência estranha para quem lê ou escuta.

É o que acontece, por exemplo, quando alguém diz “degustar um perfume” ou “embarcar numa ideia”, trocando verbos que, por convenção e uso semântico, se ligam a certos campos de sentido específicos. Degustar remete ao sentido gustativo, associado ao que se prova com o paladar; já perfume se sente com o olfato – daí o estranhamento. Do mesmo modo, embora “embarcar” possa ter sentido figurado, a imagem de “uma ideia” como meio de transporte causa ruído no enunciado.

Como usuários competentes da língua, percebemos outras combinações desajustadas no cotidiano. Em geral, isso ocorre quando notamos uma junção atípica de palavras ou quando uma das palavras de uma combinação costuma, tradicionalmente, aparecer com outra companheira e não com aquela ali disposta. É o caso, por exemplo, de alguém escrever “levantar elogios” em vez de “fazer elogios” ou “receber elogios”. Embora compreensível, a expressão soa estranha porque o verbo “levantar” costuma se associar a palavras como “suspeitas” ou “hipóteses”, e não a “elogios”.

Em outros casos, o desvio envolve expressões cristalizadas da língua, cujo sentido resulta da combinação convencional entre os termos, e não do valor de cada palavra isoladamente. É o que ocorre, por exemplo, com “costurar arestas”, expressão encontrada por Helênio Oliveira em redações de vestibulandos, provavelmente originada da troca inadequada de “aparar” por “costurar”. A substituição compromete o sentido porque altera uma unidade linguística fixa, como acontece também com “abandonar o barco” (no sentido de desistir), que não pode ser trocado por “deixar o barco” sem perda de sentido figurado.

Essas impropriedades não se restringem às expressões cristalizadas ou às combinações usuais da língua. Há construções que, de tão recorrentes, tornam-se quase inquestionáveis – e sua ruptura provoca surpresa, estranhamento ou mesmo comicidade. No entanto, nem toda quebra desse tipo é fruto de erro: há casos em que a subversão das expectativas linguísticas é intencional e carrega propósito estilístico, ideológico ou crítico. É o que observamos, por exemplo, na expressão “diálogo cometido”, empregada por Milly Lacombe em uma crônica recente, em que a escolha lexical incomum opera como denúncia e gesto político.

Diálogo é porrada?

Observemos esse caso encontrado na coluna de Mily Lacombe, no Portal UOL, em 25 de março de 2025, no texto intitulado Romário e Raphinha dão aula de masculinidade tóxica. Trata a colunista do diálogo entre o senador Romário (ex-jogador de futebol) e o jogador da seleção brasileira Raphinha, um dia antes de um amistoso entre Brasil e Argentina, do qual Raphinha iria participar. No diálogo, Romário pergunta se Raphinha vai dar porrada nos argentinos e o jogador da seleção responde que sim, que vai dar porrada dentro e fora do campo, se necessário.

Diz a colunista em seu texto: “Minha amiga Alicia Klein já escreveu uma excelente coluna sobre o tema do diálogo cometido entre Raphinha e Romário” (grifos meus). Vejamos a combinação “diálogo cometido”. Cometemos um diálogo?, poderíamos nos perguntar. Parece haver consenso de que, quando usamos o verbo “cometer”, ele costuma vir acompanhado por palavras do campo semântico da violência, do equívoco ou da transgressão, em construções como “cometer erro”, “cometer suicídio”, “cometer crime”, “cometer estupro”.

Dentre essas ocorrências, “crime” se destaca como forma recorrente e emblemática, ocupando o lugar de objeto direto do verbo “cometer”.

A combinação das palavras na vida da língua

Então Milly cometeu um erro gramatical? Usou as palavras sem propriedade? Fez uma combinação desajustada? Certamente não. É justamente aqui que a dinamicidade da língua – e a responsabilidade que temos de estudá-la em sua constante atualização – nos interpela. O que a colunista realiza é uma escolha lexical e um arranjo sintático plenamente orientados por seu propósito comunicativo.

Como se percebe ao longo de seu texto, Lacombe denuncia que “ser homem dentro de uma sociedade patriarcal é ter o direito ao exercício da violência”. Isso significa que, na interpretação da autora, o diálogo entre os dois jogadores não foi apenas uma conversa, mas um ato simbólico de violência. Para ser homem – e se afirmar como tal diante de outros homens – é preciso, nesse modelo, aderir à lógica da violência.

E o que dizer da palavra “diálogo”? Em seu uso mais comum, diálogo remete à ideia de interação, de escuta mútua, de compartilhamento de ideias – uma forma de reflexão construída com o outro. Costuma-se afirmar que pessoas equilibradas resolvem conflitos “no diálogo”. Mas será mesmo esse o caso no episódio narrado? O que se observa no “diálogo cometido” entre os dois futebolistas está muito distante dessa concepção: ali, a conversa se estrutura não como espaço de troca, mas como reafirmação de uma lógica de confronto.

As palavras e a denúncia da violência

O sociólogo francês Daniel Welzer-Lang construiu um conceito muito interessante para entendermos esse lugar social da conversa entre os dois jogadores. É a “casa dos homens”. Refere-se a lugares onde os homens se reúnem desde a infância e adolescência nos quais a “homossociabilidade pode ser vivida e experimentada em grupos de pares” e onde se incentiva a virilidade, a força física, o enfrentamento e, principalmente, ser diferente a mulher. Na obrigatoriedade de ser forte, viril, briguento e macho, a masculinidade vai se construindo nos contornos da violência.

E aonde entra a língua nessa história? O que acontece é que a língua que falamos é viva e dinâmica e que o sentido das palavras e de seus arranjos nos textos que lemos é determinado não apenas por suas regras internas, ou regras gramaticais, como se costuma dizer. O que escolhemos depende da situação, como o lugar, o tempo, o tema e a percepção que temos dos nossos leitores, no caso do texto escrito, e dos nossos ouvintes, no caso do texto falado.

Também estão implicados nessa escolha lexical o sentido que se pretende construir e, sobretudo, a intencionalidade discursiva que a orienta. No caso da colunista Milly Lacombe, essa intencionalidade se manifesta de forma nítida: trata-se de uma operação linguística voltada à denúncia dos discursos tóxicos de masculinidade, ancorados na violência e na exclusão.

Parece que falar, dizer, comentar pode ser um ato de violência quando porrada é tão naturalizada assim. No diálogo entre homens tóxicos cometer esse diálogo tem incentivado a continuidade de uma triste masculinidade: a que agride, a que insulta. A que mata.

Em tempo, no tal jogo referido por Romário e Raphinha, o Brasil foi derrotado pela Argentina com uma diferença de três gols (feito alcançado pela última vez há 61 anos). No final da partida, jogadores argentinos fizeram um minuto de silêncio e cantaram “Brasil está morto”.

(*) Beatriz Daruj Gil, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, através do Jornal da USP

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.

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