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Doença de Chagas – uma hidra de múltiplos desafios médicos e sociais

Por J. Antonio Marin-Neto (*) | 02/02/2017 10:26

Como a mitológica hidra de Lerna, da qual Héracles em seu segundo trabalho teve que esmagar e queimar várias cabeças mortais, mas apenas enterrar sob grande rocha a que era imortal, a doença de Chagas também não é passível de erradicação, e seus inúmeros aspectos epidemiológicas e clínicos constituem resistentes desafios médicos e sociais adicionalmente enfrentados.

A impossibilidade de erradicação decorre de seu caráter essencialmente enzoótico, dispondo de farto reservatório de hospedeiros naturais entre os animais selvagens e também domesticados, e à multiplicidade de vetores hematófagos silvestres, capazes de estocar e transmitir o parasito causador da moléstia, o T. cruzi.

Os demais desafios – passíveis de solução mais definitiva como o eram as cabeças mortais da hidra mitológica – são consequentes à imperativa necessidade de controle médico e social, e derivam de variadas inflexões epidemiológicas e clínicas constatadas ao longo de sua mais recente história, de pouco mais de um século de conhecimento da doença.

Como a mitológica hidra de Lerna, da qual Héracles em seu segundo trabalho teve que esmagar e queimar várias cabeças mortais, mas apenas enterrar sob grande rocha a que era imortal, a doença de Chagas também não é passível de erradicação, e seus inúmeros aspectos epidemiológicas e clínicos constituem resistentes desafios médicos e sociais adicionalmente enfrentados.

A impossibilidade de erradicação decorre de seu caráter essencialmente enzoótico, dispondo de farto reservatório de hospedeiros naturais entre os animais selvagens e também domesticados, e à multiplicidade de vetores hematófagos silvestres, capazes de estocar e transmitir o parasito causador da moléstia, o T. cruzi.

Os demais desafios – passíveis de solução mais definitiva como o eram as cabeças mortais da hidra mitológica – são consequentes à imperativa necessidade de controle médico e social, e derivam de variadas inflexões epidemiológicas e clínicas constatadas ao longo de sua mais recente história, de pouco mais de um século de conhecimento da doença.

Conquista singular na história da Medicina, a magistral divulgação em 1909 pelo médico e cientista brasileiro Carlos Chagas, em português, francês e alemão, de seus trabalhos e descobertas nos longíquos sertões de Minas Gerais, descortinava uma nova entidade mórbida afetando milhões de seres humanos, causada por uma inédita espécie de parasito, isolado no sangue humano e de outros mamíferos, e também identificava o meio bastante peculiar de sua transmissão, indiretamente ligada à picada do hospedeiro intermediário, o inseto hematófago abundante na região.

Com poucos equívocos e incorreções (e.g. atribuindo-se à mesma etiologia o bócio endêmico, causado por deficiência de iodo), a doença foi logo descrita e caracterizada em suas proteiformes manifestações clínicas, por Carlos Chagas e seus primeiros colaboradores. Entre vários outros relatos seminais, destaca-se a publicação em 1922 dos variados distúrbios que compõem a mais grave e frequente das manifestações da doença, a cardiomiopatia crônica, como verificados pelo eletrocardiograma rudimentar utilizado pelo cardiologista Eurico Villela.

O cientista cercou-se de diligentes e profícuos colaboradores, que muito contribuíram para aprofundar e expandir o conhecimento de inúmeros aspectos parasitológicos, vetoriais e clínicos da doença de Chagas. Todavia, não logrou impedir que alguns médicos, em âmbito nacional, questionassem até a própria existência da nova entidade mórbida. Exemplo marcante disso foi a abominável polêmica na Academia Nacional de Medicina, que recrudesceu de 1922 a 1923.

Especialmente a partir desse episódio nefando, bem como talvez devido ao desaparecimento precoce de Carlos Chagas – tabagista inveterado, vitimado por morte súbita em 1934 – e a certo desalento com perspectivas negativas relacionadas à doença que acometia indivíduos muito desprovidos, moradores em zonas rurais afastadas dos grandes centros urbanos na primeira metade do século XX, as conquistas iniciais tão brilhantemente encetadas passaram por virtual oblívio.

Perdeu-se por algumas décadas a própria noção médica da doença. E deixou-se de consignar o diagnóstico etiológico da doença de Chagas aos muitos pacientes acometidos de morte súbita em idade pouco avançada, ou apresentando-se com corações dilatados e arrítmicos, ou com megaesôfago e megacólon em estágios adiantados de evolução, com frequência causando desnutrição e complicações mortais variadas.

No início da segunda metade do século XX, entre vários outros, pesquisadores da recém-inaugurada Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, como Pedreira de Freitas – com trabalhos de campo empregando sorologia específica para detecção de anticorpos anti-T. cruzi – e Fritz Köberle – principalmente com material de autópsias – muito contribuíram para resgatar o conceito da doença de Chagas como etiologia para aquelas manifestações clínicas e patológicas.

Fruto de muitos esforços e iniciativas de combate aos hematófagos, a transmissão vetorial foi contida em vários países, e no Brasil eliminou-se o Triatoma infestans, principal vetor domiciliado. Também a transfusão sanguínea foi controlada, por virtual efeito colateral do combate à AIDS. A despeito desses progressos, atualmente a fase aguda da doença tem sido detectada com incidência alarmante na região Amazônica, especialmente pela ingestão de alimentos manipulados sem os requeridos cuidados higiênicos, e contaminados com insetos infectados pelo T. cruzi.

Essa via de transmissão oral reveste-se de especial gravidade pelo elevado número de parasitos infectantes, e pela grande permeabilidade das mucosas do trato alimentar humano aos mesmos. Esses surtos microepidêmicos na Amazônia também assinalam tristemente um efeito colateral do deflorestamento indiscriminado e o consequente contacto do ser humano com vetores silváticos, que rapidamente se tornam domiciliados.

Outra vertente epidemiológica intensificada durante as últimas décadas consiste na exportação da doença de Chagas para países afluentes, em virtude de fortes correntes migratórias a partir de países latinoamericanos endêmicos. Assim, contingentes elevados de indivíduos cronicamente infectados pelo T. cruzi são hoje detectados em toda a Europa, no Japão, na Oceania, e apenas nos Estados Unidos a estimativa é de que lá existam pelo menos 300.000 pessoas com a doença de Chagas.

Paradoxalmente, esse infausto salto epidemiológico tem propiciado um renovado interesse por variadas iniciativas para o controle da doença, agora em âmbito de países mais organizados socialmente, e que talvez sirvam para retirar a doença de Chagas do rol das moléstias negligenciadas.

No contexto clínico também há ainda múltiplos desafios a vencer. A cardiomiopatia, por prevalência e gravidade, a mais conspícua manifestação da doença de Chagas, associa-se a elevada morbimortalidade, mas sua prevenção e controle em nível secundário e terciário ressente-se da extrema paucidade de recursos terapêuticos apropriados.

Com base em inúmeras evidências científicas ocorreu recentemente o resgate do conceito de que a persistência parasitária constitua o mecanismo fundamental das lesões do coração na fase crônica da doença. Como corolário há a imperiosa necessidade de se exterminar o T. cruzi, ou, pelo menos, reduzir-se a carga parasitária no organismo, no sentido de se influenciar positivamente a história natural da doença de Chagas. Isso implica o desenvolvimento de novos regimes terapêuticos para o tratamento etiológico. Mas é fato marcantemente desabonador na conturbada história do conhecimento da doença de Chagas que, até hoje, somente dois agentes farmacológicos comprovadamente tripanossomicidas tenham sido disponibilizados, já há cerca de 40 anos.

(*) J. Antonio Marin-Neto é, desde 1993, professor titular, por concurso, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP

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