'Não é Não': criação de protocolo ajuda a combater assédio a mulheres
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, na sexta-feira (29/12), a Lei 14.786/2023, a qual cria o protocolo “Não é Não” para proteger mulheres de assédio em shows, bares e boates [1]. A medida, que passa a viger daqui a 180 dias, não acabará com os abusos no país, mas é um relevante passo para a minimização da violência de gênero.
Objetiva a lei estabelecer um protocolo de atendimento de mulheres vítimas de constrangimento e violência em locais onde sejam vendidas bebidas alcoólicas, para prevenir e evitar o agravamento das situações, além de preservar às suas integridades.
As casas noturnas e estabelecimentos que sediam eventos esportivos deverão adotar normas para salvaguardar a integridade física e psicológica de mulheres e, relatado o acontecimento, os agressores hão de ser retirados do estabelecimento e, a depender, a polícia há de ser chamada ao local, para a adoção de medidas criminais, como sempre ocorreu, diga-se. Têm, também, a obrigação de criar um código próprio, a ser divulgado nos banheiros femininos, objetivando que as mulheres alertem funcionários que precisam de ajuda.
Os proprietários e os organizadores daqueles lugares devem treinar funcionários para agir em caso de denúncia de assédio e outros. Isso inclui disponibilização de recursos para que a denunciante possa, como precitado, chamar a polícia ou regressar à sua casa de forma segura e preparo para preservação de provas. A lei dispõe que, se o estabelecimento tiver câmeras de segurança, tem-se garantir o acesso às imagens à Polícia Civil e demais autoridades competentes, devendo as relacionadas ao fato serem preservadas por pelo menos 30 dias.
De acordo com a “Não é Não”, são direitos da mulher ser prontamente protegida pela equipe do estabelecimento a fim de que possa relatar o constrangimento ou a violência sofridos; ser informada sobre os seus direitos; ser imediatamente afastada e protegida do agressor; e expor se sofreu constrangimento ou violência, para os efeitos das medidas previstas na norma e demais legislações vigentes.
Segundo a lei, constrangimento é “qualquer insistência, física ou verbal, sofrida pela mulher depois de manifestada a sua discordância com a interação”. Já a violência é definida como “uso da força que tenha como resultado lesão, morte ou dano, entre outros, conforme legislação penal em vigor”.
Os que descumprirem o protocolo “Não é Não” poderão ser punidos com advertência ou outras penalidades previstas nas legislações vigentes. Apesar da norma só obrigar os organizadores, os patrocinadores dos eventos poderão ficar temerosos de apoiar casas noturnas onde já ocorreram tais episódios. Dessa maneira, estes podem vir a exigir cláusulas contratuais que poderão ter o potencial de inviabilizar à realização de eventos, uma vez que bares, boates etc. podem ser alvo de ações judiciais se não garantirem a segurança das mulheres.
“Não é Não” destina-se aos proprietários e aos organizadores de shows e eventos, porém, inúmeros artistas patrocinam e/ou copatrocinam os seus próprios shows e eventos e, alguns, os de terceiros. Tais transações costumam se dar por intermédio de empresas que titularizam, as quais têm o único objetivo de “vendê-los” e/ou de “vender” o de outros artistas que patrocinam e/ou agenciam, e desta forma atuam por “n” motivos como, por exemplo, questões tributárias, previdenciárias etc.; são as “pejotas” que, a depender do entendimento do Judiciário, poderão igualmente ser apenadas por desventura caso não (co)cumpram com os protocolos legais. Águas rolarão.
Doravante, é prudente que os artistas incluam em seus contratos cláusulas em que os contratantes assegurem que os protocolos da “Não é Não” estão obedecidos, sem deslembrar que os patrocinadores em geral aumentarão às suas luzes para o que patrocinam, quer por exigência de seu compliance, quer porque não desejarão ver a marca da sua empresa exposta negativamente à sociedade civil, tampouco aos riscos de apagamento nas redes sociais etc. Para os contratos já firmados, mas que os eventos e shows somente ocorrerão após os 180 dias de vacância, de bom alvitre aditá-los, para que aquelas cláusulas passem a integrá-los, objetivando que os seus nomes, que emprestam enorme popularidade a qualquer acontecimento, sejam envolvidos, abusivamente, pelos meios de comunicação, com especial destaque para o risco de apagamento que pode advir, com ferocidade, pelas redes sociais.
O protocolo brasileiro é semelhante ao “No Callem”, criado pela cidade de Barcelona, na Espanha, em 2018, e aplicado no episódio do jogador de futebol Daniel Alves, por exemplo. O programa catalão foi idealizado para combater agressões sexuais e violência machista em espaços de lazer da cidade, como discotecas e bares.
A Lei 14.786/2023 é mais um avanço na luta contra as inúmeras práticas de violência contra a mulher. É um novo marco no movimento cuja a primeira grande passada foi a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Editada para enfrentar atos de violência física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral contra a mulher, é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher uma das três normas sobre o assunto mais avançadas do mundo [3]. A Lei Maria da Penha foi essencial em aumentar a conscientização sobre a violência de gênero.
Desde então, houve outros avanços legislativos e no sistema de justiça, como a tipificação do feminicídio (Lei 13.104/2015) e o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, tornado obrigatório pelo Conselho Nacional de Justiça pela Resolução 492/2023.
Não obstante possa progredir no combate à desigualdade de gênero, o governo Lula vem promovendo avanços na área, face ao deserto de iniciativas dos últimos anos. No Dia Internacional da Mulher (8 de março), restou sancionada alteração à CLT prevendo a obrigatoriedade da igualdade salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens para realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função; alterou o Estatuto da Advocacia para incluir o assédio moral, o assédio sexual e a discriminação entre as infrações ético-disciplinares da Ordem dos Advogados do Brasil; e modificou a Lei Maria da Penha, possibilitando que o depoimento da mulher vítima de violência perante a autoridade policial ou a apresentação de suas alegações escritas deem início às medidas protetivas de urgência, sem necessidade de boletim de ocorrência ou inquérito policial.
Em abril, o presidente sancionou leis que criam um programa para combater o assédio sexual em órgãos públicos; estabelecem o funcionamento ininterrupto das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher; e ajudam vítimas de violência doméstica e familiar a conseguir trabalho. Cinco meses depois, Lula avalizou um parecer da Advocacia-Geral da União — portanto, vinculante para toda a administração pública federal — que prevê a pena de demissão para casos comprovados de assédio sexual no funcionalismo.
O debate sobre o assédio contra mulheres ganhou força após o jornal norte-americano The New York Times, em 2017, revelar abusos sexuais cometidos pelo produtor de filmes de Hollywood Harvey Weinstein contra funcionárias e atrizes em início de carreira. Após a publicação da primeira reportagem, em outubro daquele ano, diversas outras mulheres quiseram falar sobre os abusos de Weinstein. O produtor não acionou a Justiça pelas violações das cláusulas de confidencialidade que as obrigou a assinar e passou a ser alvo de investigações e processos. Com isso, surgiu o movimento #MeToo, que se espalhou pelo mundo, no qual as mulheres relatavam atos de assédio que tinham sofrido. Diversas celebridades e executivos foram acusados, e empresas e instituições mudaram suas práticas com relação ao assédio sexual.
Há um porém na nova lei, contudo — ela não se aplica a cultos nem a outros eventos realizados em locais de natureza religiosa. Talvez Lula tenha buscado evitar novos conflitos em um país já altamente polarizado, especialmente com a fortíssima bancada evangélica no Congresso. De qualquer sorte, não deixa de ser uma lacuna importante da nova norma. Afinal, igrejas e templos são locais onde tais práticas são realizadas com muita frequência.
A criação do protocolo “Não é Não” é um avanço na proteção das mulheres. É um progresso pequeno — os maiores cabem à cultura, não à legislação —, mas na direção certa. Há de chegar o dia em que as mulheres não precisarão mais ter medo de ser abusadas pelos homens. Não está perto, é certo. Porém, tem de ser perseguida pela sociedade, ainda que seja uma utopia. Como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “a utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
Com estas primeiras impressões sobre nova lei, que não são pétreas, dúvida não há que ela será demasiadamente questionada no Judiciário, que detém a competência constitucional de dar a última palavra. Isto faz parte do processo democrático, e a sociedade, aos poucos, vem compreendendo que quanto mais limites houver, mais poder terão os seus cidadãos e as suas cidadãs. Afinal, não há poder ilimitado.
Ver-se-á, com o decorrer do tempo, que não deve se igualar ao tempo da luz, muito pelo contrário, tudo para evitar atropelos de lado a lado, o joio será separado do trigo. Enquanto este não chegar a bom termo, indisputável que as pessoas humanas convivam em harmonia, objetivo maior que a humanidade tanto almeja. Paz, muita paz.
(*) Luís Guilherme Vieira é advogado criminal, cofundador e membro dos Conselhos Deliberativos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj), membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.