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Qual é a cara da ciência?

Peter Schulz (*) | 03/07/2021 14:30

Uma entrevista dada ao jornalista Evanildo da Silveira para uma matéria da revista Questão de Ciência, acabou desencadeando entre meus botões uma série de outras perguntas e a principal pode ser resumida assim: como cientistas se reconhecem? Cientista aqui significa o que está mais ou menos nos dicionários: aquele ou aquela (profissional?) que pratica a ciência.

Sejam estudantes se debruçando sobre seus primeiros projetos de pesquisa, ou líderes renomados de grupos de colegas cientistas. E aqui a ressalva, o que segue refere-se a parte das ciências, as chamadas ciências naturais, como física, química e biologia, entre outras. Relembrando a minha socialização profissional, quando se aprende as atitudes e comportamentos dessa singular classe de profissionais, topei com a suada montagem inicial da minha lista de publicações. Suada porque não era fácil ter o que acrescentar no currículo em papel até que completasse a primeira página.

Em busca de bolsas, vi colegas aumentarem o espaçamento das linhas, pois o número de páginas impressionava. Contar os itens de fato era só uma segunda impressão. E ali a gente se identificava, pelo menos eu via a construção da minha identidade: os títulos dos artigos e os periódicos onde eram publicados, a parceria com o orientador na autoria. E não se andava pelos corredores distribuindo cópias das listas de publicações, era algo até íntimo, mas compartilhado necessariamente com um grupo anônimo que julgava seu novo pedido de bolsa.

Com o tempo aprendi que era possível vasculhar as listas de colegas, através do Science Citation Index do Institute of Scientific Information. Tinha o índice de fontes, onde era possível ver o que cada um tinha publicado em um dado ano, e o índice de citações, no qual podia-se checar as citações que um certo autor recebeu no ano escolhido. Assim, para verificar a lista total de publicações e citações, era necessário consultar vários volumes. Hoje em dia, o Institute of Scientific Information virou a plataforma Web of Science, com atualizações quase diárias em vez de anuais, cumulativas e já indicando numa tacada só as citações também. A ilustração abaixo mostra um recorte da minha “capivara” (curioso apelido para currículos, que migrou das folhas corridas policiais para as conversas informais na academia) na Web of Science sobreposta à imagem de uma das páginas no Science Citation Index dedicada ao meu sobrenome.

A mediação da tecnologia levou à exposição pública do que aí acima eu chamei de identidade e, pelo seu uso crescente em avaliações, as listas parecem ter aumentado sua importância. Além disso, essa tal identidade que eu mencionei é induzida, moldada a partir do que está contido (indexado) na plataforma escolhida como guia para consultas ao que seria relevante para a ciência que cada um pratica. Enfim, identidades e listas se confundem.

Aprendemos assim e, portanto, parece natural, sem trocadilho para as ciências em questão. No entanto, não tem nada de natural, como as ciências humanas e sociais podem elucidar. É uma construção social do que é ciência e de quem é reconhecido como cientista, que remonta ao século XIX, quando as listas e seus conteúdos foram definidos. Em particular, é fascinante a árdua história de elaboração do Catalogue of Scientific Papers (1800-1863), compilado e publicado pela Royal Society of London. Essa história é contada pelo historiador Alex Csiszar em um artigo com o sugestivo título: “Como vidas se tornaram listas e artigos científicos se tornaram dados: catalogando autorias durante o século XIX”

A montagem desse catálogo, precedido de outras tentativas, respondia inicialmente a necessidade de compor um inventário da ciência, que acumulava um número crescente de descobertas e desenvolvimentos. Nesse cenário era preciso desenvolver uma tecnologia de busca (um catálogo), mas o legado tornou-se outro. As decisões tomadas para compor o catálogo moldaram a nossa visão de ciência.

Os idealizadores, para tornar o catálogo possível, precisaram definir o que é um artigo científico, dentro dos inúmeros formatos que a comunicação científica se dava, desde cartas até o texto formal com introdução-metodologia-discussão, passando por diferentes estilos próximos às crônicas. Precisaram também delimitar que publicações considerar, pois descobertas e avanços não eram descritos publicados somente nos periódicos científicos, mas também em publicações do que hoje chamamos de divulgação científica, além de jornais e revistas para o público geral. Definir as autorias também não era fácil, pois muitos cientistas importantes assinavam apenas com suas iniciais, ou usavam pseudônimos, como Thomas Young (1773-1829), um dos grandes físicos do início do século XIX.

E as decisões tomadas e executadas resultaram no catálogo, cujo frontispício aparece junto a uma página dedicada ao grande químico sueco J.J. Berzelius (1779-1848). A semelhança dessa lista com o catálogo do Science Citation Index não é mera coincidência. Qual o significado desse esforço da Royal Society no século retrasado? Recorto do texto de Csiszar o que segue entre aspas. “A visão na qual o conhecimento era construído a partir de artigos discretos e conectados a um autor”. “Sua construção foi um ato de formação de um cânone que ajudou a naturalizar a ideia de que publicação científica consistia em um tipo especial de textos e autores, que foram separados de uma passagem mais abrangente de publicação”. As listas criadas passaram a privilegiar uma representação específica de uma carreira acadêmica: a lista de publicações em periódicos científicos.

Resumindo, cientistas naturais constroem uma identidade, mas formatada dentro de um cânone, que foi recortado de um universo de expressão bem mais amplo e que naturalizou a ideia de que são especiais. Mas a minha história não termina aqui, uma das aspas acima merece um pouco mais de atenção: conhecimento construído a partir de artigos discretos (como capítulos independentes de um livro e não um livro como um todo) conectados a um autor. Sim, no século XIX, a maioria dos artigos (quando assinados) era de um único autor, mas a mesma visão de conhecimento e cânone e listagem foi assumida para listas de artigos com múltipla autoria. A autoria é um tema espinhoso e a visão limitada ao olhar para as listas cria outros problemas, mas com o espaço se encurtando, remeto a outro texto sobre isso, que, aliás, termina com uma questão, que ganha hoje uma nova dimensão: que ciência estamos fazendo e que cientistas estamos formando?

Dwigth Aktinson, que analisa as modificações dos artigos científicos ao longo de três séculos [V], chama a atenção a algumas posturas de cientistas frente a seus textos. Por um lado. teríamos artigos com uma linguagem puramente instrumental para comunicar os dados encontrados e como eles se conectam com os dados que vieram antes. Um artigo científico que é um relatório técnico. Por outro lado, vários praticantes das ciências se opõem a essa ideia: a construção do texto tem papel central na construção do conhecimento. Nesse sentido, quais são as diferentes construções de conhecimento entre os coautores que de fato escrevem o artigo e os que participam de outras etapas da pesquisa? E se ninguém mais escrever o artigo, que conhecimento é construído? A questão parece etérea, mas é a que a matéria na revista Questão de Ciência sobre papers gerados por inteligência artificial levanta.

A matéria de Evanildo da Silveira se concentra no uso de inteligência artificial encarada como fraude, mas acho que o culto de transformação de vidas em listas e de artigos em dados encontra-se no limiar de um novo estágio: o conhecimento sem construção e sem autoria.

É exatamente isso (ou quase) que a plataforma “escrevinhador de manuscritos – Scinote” oferece: uma solução para o dilema “a parte da pesquisa e descoberta é excitante, certo? Mas e o momento em que é preciso sentar-se para escrever o artigo do zero?” Afinal, diz lá a página que “você gasta até 72 horas para escrever um artigo”, muito tempo não? (Assim só daria para escrever uns cem artigos por ano!) E continua: “escrever a partir do zero é a parte mais difícil da escrita. Construir os sentidos de todos os dados em um artigo do qual você realmente se orgulhe.” Recomenda, no entanto que o autor(?) faça uma revisão final do texto gerado por inteligência artificial em apenas 24 horas. Em resumo, promove-se uma ciência que não precisa mais da construção do conhecimento. Mas as vidas(?) se transformam em listas cada vez maiores e os artigos em um número crescente de dados.

Ciência, qual será a tua cara?

(*) Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira.


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