Quando a ausência de palavras é cruel: o silêncio como violência psicológica
Nem todo silêncio é paz. Às vezes, ele grita. Às vezes, sufoca. E, em determinadas circunstâncias, silenciar é um ato de poder. Um poder que machuca, que anula, que manipula. Quando a ausência de palavras não vem como respeito, mas como retaliação, ela deixa de ser um espaço de reflexão para se tornar uma prisão invisível. O silêncio, quando usado como ferramenta de controle emocional, é uma forma de violência psicológica.
O silêncio como arma
Existe uma diferença fundamental entre o silêncio que respeita e o silêncio que pune. O primeiro é uma escolha individual diante de um momento de tensão, de dor ou de introspecção. O segundo é um castigo. É quando alguém opta deliberadamente por se calar como forma de provocar sofrimento no outro. É a famosa “punição pelo gelo”, muito comum em relações abusivas — sejam elas amorosas, familiares, profissionais ou de amizade.
Esse tipo de silêncio não busca resolver nada. Ao contrário: ele intensifica o conflito, alimenta a insegurança e enfraquece o vínculo. Quem o impõe assume uma posição de superioridade emocional, transmitindo a mensagem de que a outra pessoa não merece sequer uma resposta. Que sua dor, sua dúvida ou sua tentativa de reconciliação não são dignas de atenção. Isso não é maturidade emocional. Isso é violência.
A dor de ser ignorado
Ser ignorado fere em um lugar profundo: o da existência. O ser humano é relacional por natureza. Crescemos na troca — de olhares, de palavras, de gestos. Quando alguém escolhe, intencionalmente, nos excluir do diálogo, o que está em jogo é o nosso pertencimento. A mensagem implícita é: “você não importa”.
Essa negação da escuta não atinge apenas o orgulho. Ela atinge a autoestima, a identidade e, em casos mais graves, a sanidade emocional. Porque quem está sendo silenciado começa a se questionar: “o que eu fiz de tão grave?”, “será que sou mesmo tão difícil de amar?”, “será que mereço esse desprezo?”. O silêncio, então, se torna um espelho distorcido no qual a vítima se enxerga cada vez menor.
Silêncio não é sempre neutralidade
É importante entender que não se posicionar, quando o momento exige posicionamento, também é um ato. É escolher a omissão. Quando alguém vê uma injustiça, um mal-entendido, um conflito aberto e opta por não dizer nada, essa pessoa está tomando um lado: o lado da indiferença. E, muitas vezes, a indiferença é mais cortante do que qualquer palavra ríspida.
Existe uma falsa ideia de que “ficar em silêncio” é sempre um sinal de maturidade ou de sabedoria. Mas maturidade não é evitar o confronto a qualquer custo. É saber como e quando se posicionar. É compreender que, diante de certas situações, calar-se pode ser tão destrutivo quanto atacar.
Silenciar como forma de controle
Muitas dinâmicas tóxicas se constroem em torno do silêncio. É comum em relacionamentos abusivos o uso do silêncio como tática de manipulação emocional. Um parceiro erra, é confrontado e, em vez de dialogar, se fecha. Deixa a outra pessoa falando sozinha. Some por horas, dias, semanas. Não responde mensagens, não olha nos olhos, não diz uma só palavra.
Esse comportamento é chamado de “stonewalling” (termo da psicologia relacional) e é devastador. Ele cria um ambiente de tensão constante, onde a vítima caminha em ovos, com medo de provocar um novo “silêncio de castigo”. O silêncio, aqui, não é ausência: é presença opressora. Ele paira, pesa, paralisa.
Como reagir a essa forma de violência
Identificar o silêncio como violência já é, por si só, um passo importante. Muitas pessoas não reconhecem o abuso porque não há gritos, não há ofensas diretas — há apenas um vazio. Mas esse vazio corrói. E quem sofre isso precisa entender que merece reciprocidade, comunicação e respeito.
Romper com a lógica do silêncio punitivo exige coragem. Às vezes, é preciso confrontar quem silencia. Outras vezes, é preciso se afastar de quem se recusa a conversar. E, em muitos casos, é fundamental buscar apoio — seja de amigos confiáveis, seja de um terapeuta.
O ser humano é feito de linguagem. Através da fala, compartilhamos, curamos, reconstruímos pontes. O silêncio tem o seu lugar — ele pode ser necessário, acolhedor, reflexivo. Mas quando se torna muro, quando se impõe como forma de punição, ele deixa de ser escolha para se tornar prisão.
Silenciar o outro é tentar apagar sua existência. É apagar a conversa, o vínculo, o afeto. E ninguém merece viver cercado de ausências quando precisa de presença. Que a gente nunca use o silêncio como arma. E que, sobretudo, a gente reconheça quando ele está nos ferindo.
Palavras podem machucar — é verdade. Mas a ausência delas, quando usada como forma de punição, pode ser ainda mais cruel.
(*) Cristiane Lang, psicóloga clínica especializada em Oncologia
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