Telas e TEA não combinam
A revolução digital trouxe inúmeros benefícios para a vida contemporânea, mas também revelou um lado sombrio que a ciência tem explorado com cada vez mais atenção: o impacto nocivo da exposição excessiva às telas, especialmente durante a primeira infância — fase que vai do nascimento até os 6 anos de idade.
Desde 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que crianças entre 2 e 5 anos não ultrapassem mais do que uma hora por dia em frente às telas. Para menores de 2 anos, a orientação é clara: zero exposição. No entanto, a realidade está muito distante dessas diretrizes. Estima-se que mais de 60% das crianças no mundo ultrapassam esses limites, ficando de 2 horas a 5 horas por dia diante de dispositivos eletrônicos.
No Brasil, a situação é igualmente preocupante. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, crianças em idade pré-escolar passam, em média, de 3 horas a 5 horas por dia diante de telas. Em 2023, uma pesquisa do Datafolha revelou que 68% dos pais relataram que seus filhos com menos de 3 anos usam dispositivos com tela todos os dias.
A primeira infância é um período crítico para o desenvolvimento emocional, cognitivo e social. É nessa fase que o cérebro humano evolui com maior rapidez, formando milhares de sinapses a partir das interações com o ambiente e com outras pessoas. Aprender exige toque, movimento, olhar, fala, escuta, emoção — estímulos sensoriais ricos e interações humanas complexas que nenhuma tela é capaz de proporcionar.
A relação com as telas, por outro lado, é passiva, unidimensional e pobre em estímulos reais. Deslizar o dedo sobre uma tela não substitui atividades como montar um quebra-cabeças, desenhar no papel, chutar uma bola ou abraçar um amigo. A criança aprende com o corpo, com a troca, com a imitação — e tudo isso exige presença, afeto, convivência.
Diversos estudos já comprovaram que o uso excessivo de telas compromete o desenvolvimento infantil. Atrasos na fala e na aprendizagem, risco aumentado de sedentarismo, distúrbios no sono, menor tolerância à frustração e enfraquecimento dos vínculos afetivos são apenas alguns dos efeitos relatados.
Além disso, o excesso de telas está associado ao aumento de sintomas relacionados ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O consumo constante de conteúdos de ritmo acelerado — como vídeos curtos em redes sociais ou jogos interativos — prejudica a capacidade de concentração e o controle inibitório, dificultando que a criança pense antes de agir.
Na minha área de atuação, atendendo pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), pesquisas recentes vêm investigando as conexões entre o uso de telas e essa condição neurodivergente. Vale reforçar: o TEA não é causado pelo uso de telas. Ele resulta da interação entre predisposição genética e fatores ambientais diversos. O uso intensivo de telas não é um gatilho para o surgimento do transtorno, mas pode sim agravar ou simular seus sintomas.
Pesquisadores norte-americanos já apontam a existência dos chamados “simuladores de autismo”: crianças neurodivergentes que, por ficarem muitas horas diante de telas, começam a apresentar comportamentos semelhantes aos de pessoas com TEA — como dificuldade no contato visual, atrasos na fala, repetição de movimentos e pouca interação social. A boa notícia? Na maioria dos casos, ao reduzir significativamente o tempo de tela, esses sintomas desaparecem em poucos meses.
Infelizmente, o mesmo não vale para crianças com diagnóstico de TEA. Nesses casos, a exposição excessiva às telas é ainda mais prejudicial. Estudos de rastreamento ocular mostram que bebês com TEA tendem a fixar o olhar em partes isoladas do rosto das pessoas — como orelhas ou cabelos — em vez de focarem nos olhos e na boca. Também demonstram maior interesse por objetos do que por rostos humanos, o que pode se refletir em uma atração intensa por dispositivos eletrônicos.
Em outras palavras, para crianças com autismo, o uso exagerado de telas não apenas compromete o desenvolvimento, como também intensifica os sintomas do transtorno. Quanto mais tempo diante da tela, maior a tendência de isolamento, menor a interação social — e mais difícil a construção de vínculos afetivos e cognitivos fundamentais.
É preciso reforçar: telas e infância não combinam. E para crianças com TEA, essa relação pode se tornar ainda mais danosa. O caminho é o equilíbrio, com consciência, responsabilidade e presença ativa de adultos que promovam experiências reais, ricas em afeto, linguagem, movimento e conexão humana.
(*) Helio Van Der Linden, neurologista infantil e neurofisiologista pela USP, com especialização em autismo, doenças neurogenéticas e epilepsia, através do Estadão
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