O dia em que encontrei o Raul Seixas no calçadão da Barão
Início dos anos 1990, justamente no período em que o Plano Real começa a fazer água. O nosso dinheiro perde valor, já não se compra mais um dólar por um real, e o humor do brasileiro indica que agora tínhamos o “Plano Latinha”: lá tinha uma mercearia, lá tinha uma barbearia, e lá tinha um restaurante.
Eu, ainda um jovem com menos de trinta anos, cabeça cheia de sonhos e planos, andava distraído pela rua Barão do Rio Branco, em Campo Grande, naquela quarta-feira de sol muito forte.
Bem ao frente ao Bar do Zé notei um rosto conhecido - um homem na casa dos quarenta e poucos anos, muito magro, uma malcuidada barbicha e vestindo calça jeans desbotada, botas pretas e uma surrada camisa xadrez de extremo mau gosto. Como ele notou que eu o olhava, foi logo dizendo.
-Bicho, “eu sou egoísta” demais, mas me paga uma cerveja?
Logo percebi o com forte sotaque nordestino e fala quase cantada, e disse:
- Cara, você se parece muito com o Raul Seixas.
A resposta foi imediata:
- É isso. “Meu nome é Raul Santos Seixas, baiano de Creguenhem, oito horas de mula e doze horas de trem”. Claro que sou eu, cara, não me reconhece, não?
- Perdão, mas porque eu te reconheceria assim?
- Rapaz, você me conhece de adolescente, desde aquele disco, o Gita, que você comprou num de seus primeiros salários como mirim da Caixa Federal.
- Verdade, comprei esse disco nessa idade. E depois todos os outros, com meu amigo Paulinho. Mas... como você sabe disso?
- Pô, bicho, esqueceu que “eu nasci a dez mil anos atrás, e não tem nada neste muno que eu não saiba demais”.
- Raul.... não, claro que não, você morreu anos atrás.
- Bobagem, você acreditou mesmo no “Canto para minha morte”? Mas, “saiba que eu estou em você, mas você não está em mim”.
- Caramba, é você mesmo. Mas, o que você faz aqui?
- Isso nem eu sei, “não sei onde eu tô indo, mas sei que eu tô no meu caminho”.
- Sim, mas como assim, está hospedando onde, cadê suas malas?
- Fica tranquilo, bicho, “não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem”.
Nesse momento percebi que aquele homem só podia mesmo ser o Raul. O jeito de falar, o tom de voz, a maluca e caótica serenidade e, principalmente, como esse cara saberia do meu primeiro disco... dele mesmo?
- Menino, "a gente agrada a Deus, fazendo o que o diabo gosta”. Essa cerva saiu ou não sai?
E, dizendo isso, me estendeu uma cadeira, de metal, vermelha, com o logotipo da Brahma Chopp estampada. Sentei-me.
- Raul, só uma cerveja, nessa crise estou duro - e já vou avisando que ‘outras coisas’ não tenho, não.
- Tá tranquilo, bicho, tem outras coisas, não, “Não quero mais andar na contramão” e, quando a essa crise, “não diga que a vitória está perdida, tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, sentenciou.
Feito o pedido, o garçom sem ao menos desconfiar de quem estava comigo, abriu a garrafa de Bavaria, mais barata, a única para qual eu tinha o dinheiro. Raul deu um grande gole, e apenas depois, levantou o copo e disse:
- Obrigado, cara. Mas, “eu devia estar contente”, mas tenho que ir....”
- Ir para onde, Raul, hora dessas?
- Sei lá bicho, “mas é hora do trem passar”. Já “posso partir sem problema algum...”
- Sim, claro, mas como você chegou aqui? Me explica, isso me intrigou muito.
- Isso não sei dizer. Deve ter sido de “Corcel 73”, ou, sei lá, disco voador.
- Disco voador, nunca pensei nisso....
- Eu imagino, as pessoas não se ligam “nas mensagens que nos chegam sem parar, estão muito ocupadas pra pensar”. Igual a você.
- Entendi.
- Sabe, Rogério... é esse seu nome, né? “Eu não sei se é hora de partir ou de chegar”, mas me vou. E terminou a cerveja, que consumiu em três grandes goles.
- Tá legal, Raul. Nossa, que bom te ver. Mas, porque eu fui o escolhido?
- Porque, meu amigo, “a serpente está na terra e o programa está no ar”, entendeu. E “eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira”, e você agora tem uma missão.
- Me fale, que missão é essa?
- Bicho, eu preciso, preciso mesmo que você me faça uma coisa...
De repente, ouço um barulho inquietante. Olhei para a frente e os lados - e nada pude ver. Estava totalmente escuro. Ao fundo ouço a voz do Raul, em volume bastante alto: “Eu prefiro ser, essa metamorfose ambulante, do quê ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Instintivamente, acendi a luz do quarto e vi, no móvel ao lado meu telefone celular, de onde vinha a música. Era o despertador, programado para me acordar com Metamorfose Ambulante, como se dissesse, acorde, já é cinco e meia da manhã.
Foi assim que eu vivi o dia em que a terra parou.
Rogério Alexandre Zanetti é jornalista e publicitário
Entre aspas, títulos e trechos de músicas de Raul Seixa
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.