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Beba das Crônicas

O dia em que encontrei o Raul Seixas no calçadão da Barão

Por Rogério Alexandre Zanetti (*) | 10/07/2025 10:50

Início dos anos 1990, justamente no período em que o Plano Real começa a fazer água. O nosso dinheiro perde valor, já não se compra mais um dólar por um real, e o humor do brasileiro indica que agora tínhamos o “Plano Latinha”: lá tinha uma mercearia, lá tinha uma barbearia, e lá tinha um restaurante.

Eu, ainda um jovem com menos de trinta anos, cabeça cheia de sonhos e planos, andava distraído pela rua Barão do Rio Branco, em Campo Grande, naquela quarta-feira de sol muito forte.

Bem ao frente ao Bar do Zé notei um rosto conhecido -  um homem na casa dos quarenta e poucos anos, muito magro, uma malcuidada barbicha e vestindo calça jeans desbotada, botas pretas e uma surrada camisa xadrez de extremo mau gosto. Como ele notou que eu o olhava, foi logo dizendo.

-Bicho, “eu sou egoísta” demais, mas me paga uma cerveja?

Logo percebi o com forte sotaque nordestino e fala quase cantada, e disse:

- Cara, você se parece muito com o Raul Seixas.

A resposta foi imediata:

- É isso. “Meu nome é Raul Santos Seixas, baiano de Creguenhem, oito horas de mula e doze horas de trem”. Claro que sou eu, cara, não me reconhece, não?

- Perdão, mas porque eu te reconheceria assim?

- Rapaz, você me conhece de adolescente, desde aquele disco, o Gita, que você comprou num de seus primeiros salários como mirim da Caixa Federal.

- Verdade, comprei esse disco nessa idade. E depois todos os outros, com meu amigo Paulinho. Mas... como você sabe disso?

- Pô, bicho, esqueceu que “eu nasci a dez mil anos atrás, e não tem nada neste muno que eu não saiba demais”.

- Raul.... não, claro que não, você morreu anos atrás.

- Bobagem, você acreditou mesmo no “Canto para minha morte”? Mas, “saiba que eu estou em você, mas você não está em mim”.

- Caramba, é você mesmo. Mas, o que você faz aqui?

- Isso nem eu sei, “não sei onde eu tô indo, mas sei que eu tô no meu caminho”.

- Sim, mas como assim, está hospedando onde, cadê suas malas?

- Fica tranquilo, bicho, “não precisa passagem, nem mesmo bagagem no trem”.

Nesse momento percebi que aquele homem só podia mesmo ser o Raul. O jeito de falar, o tom de voz, a maluca e caótica serenidade e, principalmente, como esse cara saberia do meu primeiro disco... dele mesmo?

- Menino, "a gente agrada a Deus, fazendo o que o diabo gosta”. Essa cerva saiu ou não sai?

E, dizendo isso, me estendeu uma cadeira, de metal, vermelha, com o logotipo da Brahma Chopp estampada. Sentei-me.

- Raul, só uma cerveja, nessa crise estou duro - e já vou avisando que ‘outras coisas’ não tenho, não.

- Tá tranquilo, bicho, tem outras coisas, não, “Não quero mais andar na contramão” e, quando a essa crise, “não diga que a vitória está perdida, tenha fé em Deus, tenha fé na vida”, sentenciou.

Feito o pedido, o garçom sem ao menos desconfiar de quem estava comigo, abriu a garrafa de Bavaria, mais barata, a única para qual eu tinha o dinheiro. Raul deu um grande gole, e apenas depois, levantou o copo e disse:

- Obrigado, cara. Mas, “eu devia estar contente”, mas tenho que ir....”

- Ir para onde, Raul, hora dessas?

- Sei lá bicho, “mas é hora do trem passar”. Já “posso partir sem problema algum...”

- Sim, claro, mas como você chegou aqui? Me explica, isso me intrigou muito.

- Isso não sei dizer. Deve ter sido de “Corcel 73”, ou, sei lá, disco voador.

- Disco voador, nunca pensei nisso....

- Eu imagino, as pessoas não se ligam “nas mensagens que nos chegam sem parar, estão muito ocupadas pra pensar”. Igual a você.

- Entendi.

- Sabe, Rogério... é esse seu nome, né? “Eu não sei se é hora de partir ou de chegar”, mas me vou. E terminou a cerveja, que consumiu em três grandes goles.

- Tá legal, Raul. Nossa, que bom te ver. Mas, porque eu fui o escolhido?

- Porque, meu amigo, “a serpente está na terra e o programa está no ar”, entendeu. E “eu não posso entender tanta gente aceitando a mentira”, e você agora tem uma missão.

- Me fale, que missão é essa?

- Bicho, eu preciso, preciso mesmo que você me faça uma coisa...

De repente, ouço um barulho inquietante. Olhei para a frente e os lados - e nada pude ver. Estava totalmente escuro. Ao fundo ouço a voz do Raul, em volume bastante alto: “Eu prefiro ser, essa metamorfose ambulante, do quê ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Instintivamente, acendi a luz do quarto e vi, no móvel ao lado meu telefone celular, de onde vinha a música. Era o despertador, programado para me acordar com Metamorfose Ambulante, como se dissesse, acorde, já é cinco e meia da manhã.

Foi assim que eu vivi o dia em que a terra parou.



Rogério Alexandre Zanetti é jornalista e publicitário

Entre aspas, títulos e trechos de músicas de Raul Seixa


 

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