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Cidades

MS é quinto estado com maior número denúncias de abuso sexual contra crianças

Aumento de denúncias indica avanço na conscientização, explica coordenadora-geral do Comcex/MS

Mylena Fraiha | 21/05/2023 07:45
Sofá com ursinho na sala do setor psicossocial da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)
Sofá com ursinho na sala do setor psicossocial da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente. (Foto: Henrique Kawaminami/Arquivo)

Mato Grosso do Sul é o quinto entre os estados brasileiros com o maior número de denúncias de abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, por meio do Disque 100.

No Brasil, o estado com a maior taxa proporcional à população é o Rio de Janeiro, com 247 denúncias a cada 100 mil habitantes. Os dados foram obtidos a partir de um levantamento do Campo Grande News, comparando as informações do Disque 100 com a prévia populacional do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Maio é o mês de combate à violência e exploração sexual de crianças e adolescentes. Em entrevista ao Campo Grande News, a coordenadora-geral do Comcex (Comitê de Enfrentamento da Violência e de Defesa dos Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes) de Mato Grosso do Sul, Rosana Boaventura, compartilhou detalhes sobre o trabalho no Estado.

Vinculado à Sead (Secretaria de Estado de Assistência Social e dos Direitos Humanos) e composto por membros de organizações governamentais e organizações da sociedade civil, o Comcex/MS tem o objetivo de elaborar estratégias de enfrentamento à violência sexual, de defesa dos direitos sexuais de crianças e adolescentes, de acordo com as diretrizes internacionais e nacionais.

Atualmente, Rosana também atua no comitê como representante do MNU (Movimento Negro Unificado), movimento social atuante em Campo Grande. Ela também é professora e pesquisadora.

Ela explica que o Comcex/MS também é responsável por elaborar e atualizar o Plano Estadual de Enfrentamento e de Defesa dos Direitos Sexuais de Crianças e Adolescentes, realizar o seu monitoramento e articular as diferentes ações para sua efetivação.

“Uma das nossas grandes batalhas hoje em dia é falar que essa criança tem direito sexual, mas isso não significa que ela vá fazer sexo ou que nós vamos ensiná-la a fazer sexo, não tem nada a ver. Nós vamos trabalhar a perspectiva de que essa criança precisa entender o corpo dela e que existem partes do corpo dela que não dão direito a um adulto tocar sem a permissão. E mesmo que haja uma permissão, ela é criança ou adolescente, então não tem maturidade para permitir”, pontua Rosana.

Rosana Boaventura, de camiseta amarela no meio, ao lado de outros integrantes da rede do Comcex/MS. (Foto: Direto das Ruas)
Rosana Boaventura, de camiseta amarela no meio, ao lado de outros integrantes da rede do Comcex/MS. (Foto: Direto das Ruas)

A coordenadora-geral do Comcex/MS aponta que o aumento das denúncias é um sinal de que a população do Mato Grosso do Sul tem se conscientizado sobre a importância de denunciar casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Entretanto, os desafios ainda permanecem após as denúncias. “Uma coisa que eu fico feliz é que na última década a gente conseguiu aumentar o número de denúncias. A grande dúvida é o que acontece depois que ocorre a denúncia. Como é feito o processo de proteção, encaminhamento e acompanhamento dessa criança”, pontua.

Durante a entrevista, Rosana relembrou o caso do capoeirista Raul Bartzik, de 18 anos, que foi alvo de abusos sexuais ao longo de quatro anos, pelo próprio professor de capoeira. Além do sofrimento, Raul lidou com a morosidade da Justiça em relação aos casos de abusos. O jovem se suicidou em outubro de 2021. “Nesse caso, houve a denúncia, só que precisamos discutir o que houve depois disso, como foi feito o acompanhamento desse jovem?”, questiona Rosana.

Desafios - O combate à violência e exploração sexual de crianças e adolescentes é feito a partir de uma rede, que envolve o Conselho Tutelar, a polícia, a saúde, a família e a sociedade civil. No entanto, a coordenadora-geral do Comcex/MS aponta que um dos desafios atuais dessa rede é manter o diálogo entre as instituições envolvidas no processo.

“Nesse momento é importante discutir a partir do dia 18 de maio quais são os papéis de cada um, nessa rede de combate à violência. Falta melhorar esse diálogo entre as instituições envolvidas no processo”, explica.

Rosana aponta que outro problema é a falta de acompanhamento efetivo dos casos. Ela aponta que vários casos recebem denúncias, entretanto, o desafio está no processo de encaminhamento da criança. “Precisamos ter uma noção maior de como está sendo realizado o acompanhamento dos casos. A discussão precisa ser feita a partir de todos os lados”.

Outro aspecto levantado por Rosana "é a falta de estrutura e equipe nos Conselhos Tutelares de Campo Grande" que hoje conta com cinco unidades de atendimento. “Para cada região, uma equipe só não dá conta, ainda mais em uma cidade como Campo Grande. O Conselho Tutelar no conteúdo é maravilhoso. Ele tem a função de proteger e acolher a criança e o adolescente. Não é o bicho papão, como as pessoas gostam de falar: 'Ah, chama o Conselho Tutelar para esse menino'”.

Entretanto, o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes também perpassa por preconceitos e tabus sociais. Rosana aponta que em casos de violência sexual que ganham muita repercussão, a estigmatização e a culpabilização da vítima e dos familiares também acabam por revitimizar a pessoa abusada. “A nossa sociedade só quer arranjar um culpado, só que dentro disso, muitas vezes a culpa não é colocada na pessoa que cometeu a agressão. A culpa se vira contra a própria vítima ou à figura feminina que cuida da criança - ou seja, a mãe, a avó ou a tia -, como se ela tivesse facilitado a violência, o que muitas vezes não é verdade”.

Em casos em que há uma violência sexual contra uma criança de 10 anos, a sociedade se revolta. Só que se passar de 10 anos, a sociedade responsabiliza a vítima. Quando eu tenho uma violação de direitos sexuais com uma criança de até 10 anos, a culpada é a mãe”, explica Rosana.

Família -  A família desempenha um papel fundamental na educação sexual das crianças e adolescentes. De acordo com Rosana, falar sobre sexo com as crianças e adolescentes, respeitando a linguagem e maturidade delas, é papel dos pais e responsáveis, uma vez que o diálogo e esclarecimento é um forma de prevenção ao comportamento predatório de abusadores.

“Precisamos pensar em como garantir que as crianças e adolescentes vivam sua sexualidade de forma saudável, tendo o seu tempo de desenvolvimento emocional e sexual respeitado. Tudo é enquadrado como direito sexual. A gente precisa parar de romantizar situações e de acreditar que crianças e adolescentes não entendem”, explica.

A coordenadora-geral aponta que a abertura para falar sobre sexualidade com os filhos muda de família para família. “A questão de falar sobre sexualidade também é algo que tem ligação com a educação dentro de casa. Eu por exemplo, vim de uma família em que falar sobre menstruação era um tabu, mas eu sou aberta com a minha filha. Acredito que essa abertura para falar sobre o tema é reflexo dos diversos contextos e ambientes que transitamos”.

Entretanto, além do silêncio sobre o tema, alguns ambientes familiares reproduzem a violência contra suas crianças e adolescentes, seja por meio da falta de esclarecimento, como pela prática da violência em si.“Vemos situações de violação de direitos e submissão muitas vezes ligado ao contexto de educação dentro de casa. Não é uma questão cultural apenas, é também uma questão de educação doméstica”, explica Rosana.

Durante a pandemia, Rosana apontou que Campo Grande apresentou um aumento nas denúncias de violência sexual ocorridas dentro do seio familiar. Para ela, esse retrato é sintomático e acende um alerta para a questão do abuso dentro das famílias. “A gente ouviu muita gente falando que as crianças precisavam voltar às escolas, porque o número de abusos no ambiente familiar aumentaram. Só que precisamos pensar em qual sociedade e família estamos falando? Por isso precisamos falar sobre a família”.

Escuta - Um aspecto crucial no combate à violência sexual é garantir que as vítimas tenham um espaço de escuta onde possam compartilhar suas dores e buscar apoio de profissionais. Além disso, Rosana aponta que é preciso reconhecer o cerne que envolve a violência sexual.

Segundo ela, a violência sexual está intrinsecamente ligada à ideia de domínio sobre o corpo do outro, especialmente quando se trata de corpos historicamente marginalizados. "A gente tem uma cultura na qual o corpo da mulher, da criança e do idoso são colocados como algo que pertence ao domínio de um modelo patriarcal. Então dentro dessa lógica, qualquer coisa que manifeste a 'fraqueza' ou 'fragilidade' deve estar sob o domínio do corpo supostamente provedor - que no caso é compreendido como o corpo masculino", ressalta Rosana.

A coordenadora-geral do Comcex/MS explica que o agressor utiliza táticas manipulativas para cercar a vítima, muitas vezes aproveitando-se de gestos aparentemente inofensivos para as crianças, como um carinho ou atenção. "O nosso corpo gosta de carinho, independente da idade. Seja um cafuné, um toque na mão, a atenção. Só que o agressor usa isso como uma forma de cercar a vítima. Ele vai testando e dando intervalo de tempo, para confundir a vítima, ao ponto dela achar que permitiu aquilo", explica.

Rosana também destaca que em casos em que o agressor convive com a vítima, elas se tornam alvos de ameaças. “Observando relatos e estudos, temos notado que a criança que passa pela agressão sexual dentro de um ambiente familiar também é ameaçada. Ela escuta: 'Vou matar alguém que você gosta. Vou matar você'”.

Por causa disso, a coordenadora-geral reforça a importância de criar um ambiente favorável ao diálogo, onde as crianças possam contar para alguém sobre a agressão, mesmo que o agressor seja um familiar ou conhecido. “Ela precisa contar para alguém e esse alguém precisa escutar. E essa pessoa que escutou tem a obrigação de levar o caso para o lugar correto, para que essa criança seja rapidamente retirada daquela contexto de violência”, aponta a coordenadora do Comcex/MS.

Outro aspecto crucial no combate à violência sexual é garantir que as vítimas tenham garantia de que foram escutadas e de que estão seguras. “Também precisamos explicar para essa criança que quando ela contar, ela não irá passar por nenhuma retaliação, agressão ou risco de perder alguém que goste muito ou até mesmo a própria vida”, explica Rosana.

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