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Capivara Criminal

"Bicho" dá milhões a chefes e mixaria à linha de frente

Para quem é apontador, trabalho era árduo, sem folga, para manter a estrutura que, segundo a Operação Omertà, sustenta máfia

Marta Ferreira | 13/12/2020 07:45
Guincho retira quiosque do jogo do bicho, cena histórica em Campo Grande. (Foto: Marcos Maluf)
Guincho retira quiosque do jogo do bicho, cena histórica em Campo Grande. (Foto: Marcos Maluf)

Campo Grande está vivendo episódio histórico: depois de quatro décadas encravadas na paisagem urbana da cidade, já invisíveis de tão “naturais”, as banquinhas do jogo do bicho estão sendo retiradas do passeio público, como reflexo da Operação Omertà. A saída dos “chalezinhos” deixa para trás, além da convivência a olho nu com a atividade ilegal, universo de pelo menos duas centenas de pessoas que, embora formem a linha de frente do negócio - ao receber as apostas e pagar os prêmios - conseguiam ganhos equivalentes aos de subemprego.

No topo da pirâmide da exploração da loteria ilegal, conforme as investigações, a movimentação chegava à cifra de R$ 18,2 milhões por ano. Na base, segundo a apuração da “Capivara Criminal”, nada de valor astronômico.

Para o dono do quiosque, a vida era dura, funcionando de domingo a domingo, em ambiente diminuto, pedindo banheiro emprestado dos vizinhos e sob os efeitos do calor típico de Campo Grande, que dentro da estrutura de metal, fica ainda mais severo. O trabalho, sem qualquer direito legal, é debaixo das ordens do “recolhe”, a pessoa da organização responsável por passar nos pontos duas vezes por dia, às 11h e às 17h, para pegar o dinheiro das apostas e trazer os prêmios quando eles saiam para clientes do lugar.

“A não ser o recolhe, eu não tenho contato nenhum, eu só faço o jogo ali e repasso pra eles”, conta dono de banquinha.

Aos 70 anos, o personagem vai ajudar a coluna a falar do tema com propriedade: passou mais da metade da vida atuando no jogo. “Uns 40 anos”, admite. O homem não será identificado, por razões de segurança.

Flagrado na “Black Cat”, a fase 4 da Operação Omertà, quando guichês foram lacrados, o bicheiro contou ter tido duas temporadas vendendo apostas. Entre uma e outra, trabalhou como motorista.

Em 1998, quando a empresa onde estava faliu, voltou a montar a banca, na região sul da cidade. A estrutura de metal, ele mandou fazer, 22 anos atrás. “O ponto é meu”, diz.

Entra em contato com o ´recolhe´ e eles cadastram você”, detalha sobre como as pessoas começavam no negócio.

O relato é de que antes, a organização “Gato Preto” repassava inclusive a guarita, mas depois os “prestadores de serviço” passaram a ser responsáveis por isso.

Autorização oficial para ocupar a calçada? Nenhuma. A banca ficava vizinha a uma escola, colada no muro, e a única recomendação recebida, da diretora do estabelecimento de ensino, foi para não comercializar cigarro.

"A única exigência que me fez foi pra tomar cuidado com aluno”, relembra.

Pouco – O apontador relata movimentação diária em apostas de no máximo R$ 60,00. “Vinte por cento era meu”, explica. Por semana,  a movimentação era entre R$ 400, 00 e 500,00, o equivalente a R$ 2 mil por mês.

Considerando o percentual citado, a renda com a loteria dos bichos era de no máximo R$ 400,00 ao mês.

Nos últimos cinco anos, comenta, caiu bastante a clientela, mesmo com a informatização e criação de aplicativo para apostar. Na avaliação feita, são poucos ganhadores e quando ganham, o valor é baixo. “Aí o pessoal vai fugindo”, define.

O senhorzinho tem uma suspeita: para ele, existe manipulação dos resultados para que menos gente ganhe a premiação.

“Eu tô ali porque não tenho lugar para ir pro mato”, desabafa.

Para aumentar a renda, comercializava outros produtos no ponto. “Vendo carvão, sabão de álcool, terra preta”.

Lacre na Pantanal Cap, empresa que segundo a investigação é braço financeiro de lavagem de dinheiro do jogo do bicho. (Foto: Marcos Maluf)
Lacre na Pantanal Cap, empresa que segundo a investigação é braço financeiro de lavagem de dinheiro do jogo do bicho. (Foto: Marcos Maluf)

Bicho e título de capitalização – O depoimento é significativo no momento no qual o apontador é indagado sobre outro produto que também vendia, os títulos de capitalização da Pantanal Cap, empresa lacrada desde 2 de dezembro, quando foi desenvolvida a Omertá 6, fase chamada “Arca de Noé”. Essa etapa teve como principal objetivo atacar as gerências do jogo ilegal e provar a conexão direta com a empresa, apontada como braço financeiro de lavagem de dinheiro sujo.

A mesma pessoa que recolhe o bicho, recolhe o titulo de capitalização”, afirma o apontador.

Depois,  comenta que recebia, semanalmente, em torno de trinta cartelas para os sorteios da Pantanal Cap. “Nem vendo tudo”, ressalva.

De cada cartela vendida, angariava R$ 1,50. O prêmio, quando saía, era pago pela Pantanal Cap, observa.

Quando a pergunta é sobre quem são os donos dos dois negócios, a alternativa encontrada é desconversar. “Só ouvi falar”.

Para os responsáveis pelo trabalho de investigação, os chefes do negócio à margem da leil são os empresários Jamil Name, 80 anos, e Jamil Name Filho, 43 anos, presos há mais de um ano, como chefes de milícia armada já acusada de quatro assassinatos.

Na semana passada, outro Name, o deputado estadual Jamilson (sem partido), também passou a figurar como investigado. Ele é apontado como o dono da Pantanal Cap.

Reincidente - Assim como outros 30 apontadores do jogo do bicho, o apontador cujo depoimento é relatado pela "Capivara Criminal" foi levado para a delegacia de Polícia Civil durante a investida das autoridades para lacrar os guichês em setembro. Foi ouvido e enquadrado em contravenção penal, como é tratada a loteria dos bichos. A pena prevista é de no máximo um ano de prisão, normalmente convertida em prestação de serviços à comunidade.

Para o homem de 70 anos, é o segundo flagrante em oito anos. Na oportunidade anterior, em abril de 2012, quando operação da Polícia Civil levou apontadores para a delegacia sem ampliar a investigação, a punição estabelecida pela Justiça custou R$ 300,00, pagos em três parcelas para abrigo de crianças vítimas de violação de direitos.

À época, a mesma entidade recebeu R$ 91,00 em dinheiro encontrados na banca, depois de declarado o "perdimento". As anotações sobre apostas foram destruídas.

Talonário de apostas da "Gato Preto" apreendido em banca que foi retirada de calçada nesta semana. (Foto: Divulgação)
Talonário de apostas da "Gato Preto" apreendido em banca que foi retirada de calçada nesta semana. (Foto: Divulgação)

Agora, está sendo diferente. Tudo que foi apreendido nos guichês fechados pela Operação Omertà está sendo avaliado para ser usado como prova da existência não apenas da contravenção penal, mas de crimes como organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Apesar da desmontagem da estrutura, sites especializados em divulgar resultados das extrações mostram que o jogo continua correndo e as apostas seguem em execução só que de forma ambulante ou pelo aplicativo. Não há informações sobre o pagamento a quem ganha está sendo executado.

Para o Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado), responsável pelas ações junto com o Garras (Delegacia Especializada de Repressão a Roubo a Banco, Assaltos e Sequestros), por trás da aparente inocência do jogo de apostas que premia por meio de número atribuídos a bichos, esconde-se máfia dedicada a crimes graves e violentos, de agiotagem a extorsão, de tráfico de armas a assassinatos, além de corrupção de agentes públicos.

Os apontadores, em resumo, são o peixe pequeno, que pode levar à responsabilização dos grandes.

(*) Marta Ferreira, que assina a coluna “Capivara Criminal”, é jornalista formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), chefe de reportagem no Campo Grande News. Esse espaço semanal divulgar informações sobre investigações criminais, seus personagens principais, e seu andamento na Justiça.

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