Moradores de favelas esperam “existir no mapa” com criação de CEP próprio
Segundo levantamento dos Correios, 27 comunidades urbanas de Campo Grande já contam com o registro

Entre casas improvisadas, com números pintados nas paredes, os moradores das 27 favelas de Campo Grande sempre existiram, mas, até então, fora do mapa. Sem CEP (Código de Endereçamento Postal), essas famílias viviam sem o número essencial para receber correspondências, se cadastrar em programas sociais ou até mesmo pedir comida e transporte por aplicativos.
RESUMO
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O programa federal "CEP para Todos" está levando identificação postal a 27 favelas de Campo Grande, beneficiando milhares de famílias que viviam sem endereço oficial. A iniciativa, parte do Programa Periferia Viva, visa incluir comunidades urbanas que enfrentavam dificuldades para receber correspondências e acessar serviços básicos. Moradores relatam que a falta de CEP afetava desde o recebimento de encomendas até o trabalho de vendedores autônomos. Para contornar o problema, muitos utilizavam endereços de estabelecimentos comerciais próximos ou de familiares. Embora o novo CEP não garanta entregas porta a porta, representa um passo importante para a inclusão dessas comunidades.
Para os moradores, a falta do CEP traduzia, na prática, o sentimento de “inexistência”. Segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 898 mil pessoas vivem em comunidades urbanas e favelas em Campo Grande.
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Agora, as comunidades esperam que essa realidade mude. O programa “CEP para Todos”, lançado em novembro de 2024 pelo Ministério das Cidades, dentro do Programa Periferia Viva, surgiu com a intenção de levar um CEP para cada favela e comunidade urbana do Brasil que ainda não possuía.
No começo deste mês, os Correios, em parceria com os ministérios das Cidades e das Comunicações, anunciaram a conclusão da primeira meta do programa. Campo Grande, que por anos se orgulhou de ser “a capital sem favelas”, agora conta oficialmente com 27 favelas cadastradas pelos Correios, todas com CEP próprio. Em Mato Grosso do Sul, 39 comunidades receberam a codificação.
A prefeitura diz, em nota, que tem feito o “maior esforço de regularização fundiária da história do município”, com 200 áreas catalogadas dentro do Programa Sonho Seguro, que integra as políticas de habitação social da Capital. “Entre os avanços, o Novo Samambaia já teve a regularização concluída, com matrículas individuais e inclusão no Programa Periferia Viva".

O Campo Grande News foi até algumas dessas comunidades para entender como é viver sem um endereço reconhecido. Na Comunidade Homex, a mais populosa da Capital, com cerca de 3,3 mil moradores e localizada próxima ao Jardim Centro-Oeste, a ausência de CEP trazia problemas diários, agravados pela falta de regularização fundiária de algumas famílias. Segundo a prefeitura, a região está “na fase final de aprovação urbanística”.
Morador há mais de dez anos e liderança local, Leodomar Rodrigues, de 48 anos, explica que a situação afeta até a renda das famílias, que, segundo ele, é composta por muitas mães solteiras.

É muito ruim ficar sem CEP, é difícil até pra receber fatura de conta. Até quem tem comércio dentro de casa sofre com isso. Muita gente pede perfumes pra revender, produtos de manicure, cabeleireiro, compra coisas pela internet pra poder trabalhar. Sem CEP, essas pessoas não conseguem receber as encomendas, e isso afeta a renda delas”, afirma.
Segundo Leodomar, algumas ruas da Homex têm CEP, mas são extensões de outros bairros. A numeração das casas, feita pela Emha (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), serve apenas para controle interno e não aparece em mapas. “O único número oficial é o da selagem da Emha, que nem consta no mapa. Se eu mandar meu endereço pra alguém, a pessoa não acha”, diz.
Para contornar o problema, Leodomar explica que usa o endereço do Supermercado Leão, da sua família, localizado na Rua José Pedrossian, como ponto de referência. “Descobri o CEP da rua, entrei no Google e fiz o cadastro da minha casa e do mercado. Tirei foto, fiz o registro no Google Maps e consegui transformar o local em um ponto de referência”, conta.
Além disso, ele se dispõe a receber encomendas de vizinhos. “Agora, toda a região aqui perto recebe as encomendas dos Correios na minha casa. Eu aviso no grupo do WhatsApp e as pessoas vêm retirar. Essa foi uma forma de fazer as encomendas chegarem e permitir que alguns consigam continuar trabalhando. Mas e as comunidades que não têm alguém com essa iniciativa? Elas ficam sem opção”.

Uma das moradoras que depende desse sistema é Bruna Ferreira Escobar, de 29 anos, trabalhadora de serviços gerais, que vive há nove anos na Homex. Ela relata que os entregadores costumam se perder e devolvem as encomendas.
“Eles [entregadores] não conhecem aqui. Aí quando não acham a casa, levam lá pra agência do Correios na Moreninhas, mas tem que ir lá pra poder retirar. A gente não tem como se locomover até lá, tem que pagar um Uber, e a gente trabalha o dia inteiro. Daí tem que tirar um tempo do dia pra ir lá tirar a mercadoria. É horrível”, conta Bruna.
Bruna diz que o uso de um ponto fixo ajuda, mas tira a privacidade das compras. “Chega a ser chato, porque é muita gente que pede pra entregar aqui. Muitas vezes eles têm que avisar no grupo que chegou tal mercadoria, de tal pessoa. Às vezes é um negócio que não precisa o vizinho saber que você comprou”, comenta.

A merendeira Liete Ferreira Dias, 50 anos, também moradora da Homex, explica que até os serviços de aplicativos de entrega e de transporte, como Uber e Ifood, sofrem com a falta de endereço oficial.
A localização manda eles lá pra baixo, mais de 100 metros de onde estou. Aí o motorista fica doido, ligando, mandando mensagem, dizendo que não tá achando. Eu falo: ‘Mas eu tô aqui fora!’ Então toda vez coloco na esquina do supermercado ou da creche ali em cima”, diz, referindo-se à Emei Varandas do Campo.
Morando há nove anos na região, Liete acredita que o programa federal legitima a presença das famílias. “A gente vai existir. Vamos ter nossa rua com nome, CEP certinho. Aqui já tem água, esgoto, energia, que é o mais difícil, mas não tinha CEP".
Na Comunidade Cidade dos Anjos, próxima ao Parque do Lageado, a situação é semelhante. A área, onde ainda predominam casas de madeira e lona, abriga cerca de 222 pessoas, segundo o Censo 2022.
A reportagem notou que algumas das casas contavam com numerações improvisadas com tinta spray e a selagem feita pela Emha, enquanto outras seguiam “invisíveis” e sem identificação. De acordo com a Emha, a favela ainda passa por levantamentos técnicos e sociais “para garantir moradia digna, segurança jurídica e cidadania às famílias”, disse em nota.
Lá, grande parte dos moradores faz negociação com vizinhos que já contam com CEP e vivem em casas regularizadas, onde possam receber as encomendas enviadas para lá. A moradora Raires Cebalho dos Santos, de 19 anos, é uma das pessoas que recorreu à vizinha. “Já fiz uma encomenda, e chegou na vizinha da frente, porque na casa dela que já tem CEP faz tempo".

Outros pedem as entregas em endereço de familiares, tanto os que moram no bairro Lageado, quanto os que vivem em outros bairros de Campo Grande. A moradora da Cidade dos Anjos, Beatriz Martins, de 23 anos, é uma delas. “É difícil ficar sem CPF, porque a gente não consegue receber nada”, explica. “Normalmente eu coloco o endereço de entrega na casa da minha sogra, mas ela mora no Aero Rancho”, complementa.
Beatriz também explica que a comunidade recebeu um CEP há duas semanas e que já estão cientes da nova medida federal; entretanto, aponta que há dificuldade na identificação dos barracos, já que alguns trazem numeração e outros não. “Os números estão bagunçados ainda, mas tem selagem da Emha”, comenta a moradora.
Entrega porta a porta – Apesar do avanço, o CEP único não garante entregas domiciliares de porta em porta. Segundo os Correios, a medida apenas permite que moradores dessas comunidades realizem compras on-line e retirem os produtos nas unidades mais próximas.
A empresa estatal explica que, para que o serviço porta a porta seja implantado, é necessário que as ruas estejam sinalizadas, as casas numeradas de forma ordenada e possuam caixas receptoras de correspondências.
Além disso, a gestão municipal precisa enviar aos Correios um ofício com o nome dos logradouros e o croqui da localização. “Atendimento desses critérios é de responsabilidade dos moradores e da gestão municipal”, diz o órgão em nota.
Confira abaixo a relação de CEPs recém criados para as 27 comunidades urbanas de Campo Grande.
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