Sem jaleco ou prescrição, consulta na rua cuida de quem não tem teto na Capital
Equipe de profissionais já registrou 1,4 mil pessoas em situação de rua atendidas em Campo Grande
"A saúde é direito de todos", diz um parágrafo da Constituição, e isso inclui quem não mora em uma casa e se constrange ao ter que frequentar posto de saúde ou hospital.
A maioria das pessoas que vivem nas ruas de Campo Grande é homem, têm entre 25 e 35 anos e deixou de ter um lar pelo motivo que assistentes sociais, psicólogos e profissionais da saúde chamam de "quebra de vínculo familiar". Na prática, isso significa ter sido expulso ou decidir deixar o lugar onde morava após um desentendimento comum ou por não ter emprego, ter opção sexual diferente da esperada e vício em álcool ou drogas, por exemplo. Às vezes, o "combo" é completo.
As ruas os expõem à violência física, sexual e a doenças contagiosas como a tuberculose, a sífilis e a hepatite. Para que esses corpos recebam o mínimo necessário para não adoecerem, o programa Consultório na Rua leva, há 10 anos, consultas ao ar livre a cada ponto da cidade onde há pessoas em vulnerabilidade. Fazem parte dele médica, enfermeira, técnica de enfermagem, assistente social, psicóloga, técnico de saúde bucal e motorista. O serviço é custeado pelo Ministério da Saúde.
Tratamentos - A assistente social Áurea Domingues desce do carro carregando uma caixa de plástico com vários cartões do SUS a cada ida às ruas. No porta-malas também estão contraceptivos como o implanon e a injeção trimestral. Remédios para diabéticos e testes de gravidez estão junto.
Coordenadora do serviço, Chrystianne Oliveira explica que os atendimentos e a administração dos métodos e medicamentos são feitos apenas quando há consentimento. Ela destaca que existem pacientes acompanhados há anos, e que alguns chegam a ter de três a quatro doenças tratadas ao mesmo tempo.
A enfermeira Isabella Terrazas cita o trabalho feito com profissionais do sexo, mesmo os que têm onde morar. São feitos testes rápidos, distribuídos preservativos e aplicados métodos contraceptivos também. "Eles também estão muito expostos, então são medidas de redução de danos", explica.
Ouvir histórias de vida e prestar orientações também fazem parte da rotina. "Acompanhar o paciente num todo, não apenas numa doença específica, cuidar da integralidade do indivíduo, é o diferencial de um serviço assim", acrescenta Chrystianne.
De um total de 1,4 mil que têm algum registro de atendimento pelo Consultório, cerca de 60% são dependentes químicos, conta ainda a coordenadora. "Nós ofertamos o encaminhamento para uma das vagas de internação para desintoxicação mantidas pelo poder público em hospitais ou instituições filantrópicas. A maioria fica de seis meses a um ano, volta para a rua, e é internada de novo", descreve.
Onde vão - Toda quarta-feira, equipe de nove pessoas vai atrás de pessoas em situação de rua que costumam ficar nas proximidades do Mercadão Municipal, no Centro. Às segundas, geralmente estão na antiga rodoviária da Capital. Em outros dias da semana, vão até locais como o casarão abandonado da Vila Nhá-Nhá, embaixo da ponte da Avenida Ernesto Geisel e pontos da Avenida Coronel Antonino.
A resistência sempre é um desafio e não só por parte de quem precisa de atendimento, mas também por parte de quem está de passagem. "São pessoas que querem a higienização social, não querem vê-los, não querem que existam. Às vezes batem neles", conta Áurea.
O programa é baseado no direito à saúde, mas também no direito de ir e vir que todas as pessoas têm. "Isso tem que ser respeitado", reforça a assistente social.
Quem são - A reportagem acompanhou o atendimento a três pessoas em situação de rua que estavam deitadas sob um cobertor numa manhã de sol forte, na Rua 15 de Novembro.
Eram dois homens e uma mulher. Eles não resistiram à consulta e responderam que estavam bem.
Os homens dizem ter 35 e 43 anos e viverem na rua há mais de uma década. Um deles conta que a equipe da saúde é exceção em meio a pessoas que gostariam que eles "desaparecessem".
Ficar na rua é "horrível", diz outro. "Minha casa é aqui" e "eles aqui do lado são minha família" são outras das frases soltas por quem quase não conversa, temendo ser julgado pela situação em que está.
"O grande objetivo é reintegrá-los à sociedade, mas nem sempre isso é possível. É o que a maioria das pessoas não entendem. O que estamos fazendo é garantir o mínimo de cuidado e atenção", finaliza a coordenadora do Consultório na Rua.
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