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Comportamento

Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência

O relato é um retrato cruel de que nem só de força física se faz a violência doméstica

Por Aline dos Santos | 09/06/2025 07:00
Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência
Casa Abrigo éum lugar que acolhe mulheres vítimas da violência. (Foto: Monique Alves/Sead)

A leitura das cartas das mulheres que passam pela Casa Abrigo, serviço da rede de proteção que abre as portas para quem é vítima de violência física, psicológica, sexual, patrimonial, moral ou tentativa de feminicídio, é mergulhar em sutilezas.

RESUMO

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A Casa Abrigo, serviço da rede de proteção em Campo Grande (MS), acolhe mulheres vítimas de violência doméstica e seus filhos. Relatos revelam o impacto da violência psicológica, muitas vezes minimizada, que corrói a autoestima das vítimas. Elogios, antes triviais, tornam-se momentos especiais para quem teve sua identidade apagada por abusos constantes. Além do abrigo e segurança, a Casa oferece apoio psicossocial, cursos profissionalizantes, atendimento médico e atividades como defesa pessoal, visando o empoderamento e reconstrução da vida dessas mulheres. Ao deixarem o abrigo, recebem auxílio financeiro para recomeçar. A violência doméstica, porém, persiste, evidenciada em casos como o de uma mulher esfaqueada pelo ex-marido. O combate a essa realidade exige conscientização e mudança cultural, desde a adolescência, para romper o ciclo de controle e violência contra a mulher.

Algo muito simples, como receber um elogio, se torna uma situação tão nova que uma das vítimas fez questão de registrar na folha de papel.

O mais especial foi a forma como eu fui tratada. Foi bom, muito bom, receber elogios constantes de pessoa que eu não conhecia”.

Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência

O relato é um retrato cruel de que nem só de força física se faz a violência doméstica. Dentro de casa, mulheres são apequenadas, humilhadas e desencorajadas. De tal forma, que já não reconhecem em si mesma qualquer valor. Algumas, comemoram o aniversário pela primeira vez.

“A violência doméstica nunca começa com violência física. Ela começa com observações sobre o corpo, de maneira negativa. Se substancia na violência psicológica, no demérito da pessoa. Tem casos que a gente observa a criança repetir para mãe. ‘Ah, você é louca mesmo mãe, bem que o pai fala’. ‘Você é burra’. ‘Mãe, você não sabe. Vou perguntar para o pai ‘. São violências que começam de uma maneira insidiosa. E depois, se sentindo mais seguro, o agressor vai num crescendo”, afirma a titular da Sead (Secretaria de Assistência Social e dos Estados de Direitos Humanos), Patrícia Cozzolino.

No processo de assimilar que esteve no centro de uma espiral de violência, a vítima precisa redescobrir a própria identidade. Como se estivessem pela primeira vez diante de um espelho, a reconhecer a própria face.

Hoje, eu transformei a minha tristeza em felicidade. Porque descobri que sou mais forte do que isso”, escreveu uma delas.

Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência

O reencontro com a autoestima é mencionado no relato emocionante de outra mulher.

Me sinto mais feliz, mais realizada, me sinto uma mulher mais forte, graças a vocês e me amo mais, muito mais”.

Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência

Nos textos de despedidas da Casa Abrigo, um tema faz muito sucesso: o curso de defesa pessoal. “Elas gostam muito. Não que isso vá resguardar 100% a vida da pessoa, mas é uma forma de ela ver que pode se defender numa situação de risco. Se defender de uma abordagem”, diz a coordenadora da Casa Abrigo, Daniela Galvão.

Conforme a secretária, o curso também faz parte do empoderamento feminino.

“A defesa pessoal dá uma sensação de potencialidade e isso é importante. São mulheres que foram vitimadas durante tanto tempo que ela tem ar já de submissão por tudo que sofreu. Você se vê com um novo olhar”.

Emboscada no ponto de ônibus – Para se ter ideia da violência a que as mulheres acolhidas enfrentam, veja esse exemplo real.

Um casal se separa. Passados seis meses, ela começa um relacionamento à distância e recebe a visita do namorado. Num dado dia, seguindo a vida normalmente, ela vai para o ponto de ônibus, onde embarcará num veículo do transporte coletivo com destino ao trabalho.

Mas essa mulher é interrompida. Surge o ex-marido, que lhe ataca covardemente a facadas, numa tentativa de feminicídio. Ela sobrevive. Nas mãos, ficam as feridas visíveis, machucados que a impedem de realizar qualquer atividade. A vítima e filhos precisam se refugiar na Casa Abrigo, monitorada 24 horas pela PM (Polícia Militar).

“Mesmo estando separada, o ex-marido se acha dono, proprietário da mulher. E vai atrás dela. Causa mais dor e sofrimento. Ela estava trabalhando, cuidando dos filhos, reconstruindo a vida dela”, afirma Daniela.

Patriarcal, machista e violenta – O controle do corpo feminino também vem embalado como se tratasse de cuidado, afeto. Comportamentos que começam muito cedo, em que adolescentes já costumam ouvir que não podem usar certa roupa ou cortar o cabelo.

Em cartas, mulheres agradecem até elogio que ajuda a retomar vida após violência
Patrícia Cozzolino é secretária estadual de Assistência Social. (Foto: Monique Alves/Sead)

É uma questão que precisa ser observada e combatida desde muito cedo. Porque você não pode identificar esse tipo de comportamento, que alija, que limita, como um comportamento de cuidado. E como nós estamos numa sociedade patriarcal, machista e violenta, isso é visto, muitas vezes, como se o menino estivesse se preocupando. Mas isso não está correlacionado ao afeto, mas correlacionado ao controle dos corpos femininos”, diz Patrícia.

Lugar para recomeçar – A Casa Abrigo foi remodelada e alugado um novo imóvel em Campo Grande. O local  tem 50 servidores e oferece acompanhamento médico, psicossocial, curso profissionalizante e equipe pedagógica para que mulheres e crianças prossigam com os estudos.

 “A casa foi remodelada neste governo, tem educadora física, tanto para as crianças quanto para mulheres, aula na piscina. Tem pedagoga. As crianças continuam estudando, mesmo no período em que elas se encontram acolhidas. E convênio com a UFMS [Universidade Federal de Mato Grosso do Sul] para atendimento médico, uso de medicação. Com a questão da violência, desenvolveram transtornos, desencadearam depressão, estresse pós-traumático”, destaca a secretária.

Também será desenvolvida parceria com a UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul) para que elas tenham acesso às vagas remanescentes no ensino superior. Na Casa Abrigo, as mulheres ficam incomunicáveis e não podem sair.

Houve dias difíceis, pois me sentia injustamente privada de minha liberdade, independente das coisas boas”, lembra uma das atendidas pela Casa Abrigo.

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Em 2024, o local atendeu 61 pessoas, sendo 21 mulheres e 40 crianças.

“Não é confortável para ninguém ficar incomunicável e sem poder sair daquele ambiente, por melhor que seja. Nós não deveríamos precisar da existência de um espaço assim”, diz Patrícia.

São atendidas na Casa Abrigo mulheres e crianças dos 79 municípios. Na Capital, a porta de entrada é a Casa da Mulher Brasileira. No interior, é por meio do Ceamca (Centro de Acolhimento Municipal da Criança e do Adolescente), que é acionado após a mulher procurar ajuda,  com registro de Boletim de Ocorrência contra o agressor e concessão de medida protetiva.

Plano de voo – As vítimas podem ficar na Casa Abrigo por seis meses. Na saída, considerando que não tem mais lar para volta, recebem o valor de quatro salários-mínimos (R$ 7.590) para mobiliar a nova residência. Elas também recebem um salário-mínimo (R$ 1.512) por até 12 meses.

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