MS é corredor do agrotóxico ilegal, que movimenta US$ 3,5 bilhões por ano
Insumos do Paraguai alcançam 25% do mercado que paga impostos e desafiam a fiscalização no Brasil
Em meio à imagem de potência verde que o agro vende ao mundo, o Brasil convive com um submundo bilionário: um quarto dos defensivos agrícolas usados nas lavouras tem origem ilegal. Mato Grosso do Sul lidera as apreensões, consolidando-se como corredor preferencial do contrabando vindo do Paraguai. Especialistas alertam para a infiltração do crime no setor, que pode repetir no etanol de milho o mesmo padrão que marcou a cana-de-açúcar.
RESUMO
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O mercado ilegal de defensivos agrícolas no Brasil movimenta cerca de US$ 3,5 bilhões por ano, representando 25% do total comercializado no país. Mato Grosso do Sul se destaca como principal corredor do contrabando, concentrando entre 35% e 40% das apreensões nacionais, especialmente em municípios fronteiriços com o Paraguai. O problema vai além da sonegação fiscal, configurando-se como crime organizado estruturado. Especialistas alertam para a infiltração criminosa no setor agrícola, que pode se estender ao mercado de etanol de milho, repetindo um padrão observado anteriormente na indústria da cana-de-açúcar. A situação é agravada pela legislação flexível do Paraguai e pela baixa tributação naquele país.
Segundo o Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (IDESF), cerca de 25% dos defensivos agrícolas comercializados no país são ilegais — algo em torno de US$ 3,5 bilhões dentro de um mercado total de US$ 14 bilhões.
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Os dados mais recentes da Polícia Federal, resultado da Operação Controle, reforçam a relevância de Mato Grosso do Sul como corredor do contrabando. O Estado concentra 35% a 40% das apreensões nacionais, principalmente em municípios situados na faixa de fronteira com o Paraguai como Ponta Porã, Mundo Novo e Dourados. Em 2023, foram confiscadas 575 toneladas de agrotóxicos ilegais — aumento de 180% em relação a 2022 — e apenas no primeiro trimestre de 2024 já se somavam 345 toneladas, indicando a intensificação contínua das operações.
Além de Mato Grosso do Sul, os estados mais afetados são Paraná (20% a 25%), Rio Grande do Sul (15% a 20%) e Mato Grosso (10%), que funcionam como pontos de trânsito e destino final das cargas ilegais. Os casos mais recentes, entre novembro de 2023 e março do ano passado. incluem a apreensão de 20 toneladas em Dourados, 5 toneladas em Guaíra (PR) e 1,5 tonelada em Uruguaiana (RS).
“Não se trata apenas de sonegação ou de pequenas falsificações. É crime organizado, com logística, armazenamento e distribuição bem estruturados”, afirma o engenheiro agrônomo Renato Seraphim, especialista em rastreabilidade agrícola e membro do Comitê Estratégico Soja Brasil. “O produtor que compra sem nota é cúmplice. E o crime compensa porque ninguém fica preso.”
Segundo ele, o contrabando é favorecido pela diferença tributária entre Brasil e Paraguai e pela ausência de um sistema nacional de rastreabilidade digital. “O custo Brasil facilita a falsificação. Se os preços fossem equilibrados, ninguém compraria produto falsificado. Precisamos de controle eletrônico desde a indústria até o receituário agronômico.”

Polo da ilegalidade
O Paraguai tornou-se o grande polo de formulação de agroquímicos ilegais, amparado por uma legislação flexível e carga tributária reduzida. “Lá é possível registrar e produzir um novo produto em dias, enquanto aqui o processo é lento e caro. Por isso as cargas atravessam o rio Paraná e entram por Ponta Porã e Naviraí, seguindo para o centro do país”, explica Seraphim.
Além dos defensivos, outros produtos cruzam a fronteira sem controle, como máquinas, peças agrícolas e antenas Starlink, aproveitando o diferencial de preços e a fragilidade da fiscalização. “Toda caminhonete que circula em Mato Grosso do Sul tem um Starlink — e se você perguntar onde foi vendido, não foi no Brasil”, completa.
As rotas do contrabando de agrotóxicos são as mesmas usadas por cigarros e eletrônicos. “É um negócio de baixo risco penal e alta rentabilidade. A Polícia Federal age pontualmente, mas falta presença do Estado. A impunidade institucionalizou o problema."
Um dos indícios do avanço do mercado ilegal é o uso de agrotóxicos em áreas indígenas, algo impossível sem fraude. “Nenhum veneno pode ser aplicado sem receituário agronômico, com localização, cultura e dose registradas”, explica Seraphim. “Se há produto sendo usado em área indígena, é contrabando. Não tem como ser legal.”
Segundo ele, a prática é sinal de uso clandestino para abertura de áreas irregulares, o que pode envolver conivência local e falsificação de documentos técnicos. “Há um agrônomo assinando algo que não poderia. Isso mostra que a cadeia criminosa não para na fronteira.”
No mês passado, indígenas ocuparam área, em Caarapó, em protesto contra a pulverização de agrotóxicos, que, segundo eles, tem causado adoecimento e gerado insegurança hídrica e alimentar para a comunidade. A revolta na Fazenda Ipuitã foi reprimida pela polícia militar, que retirou a comunidade da área em 28 de setembro.
Do veneno ao etanol
O avanço dos produtos ilegais é apenas uma face de uma infiltração mais ampla. Para Seraphim, o agro corre o risco de repetir o que aconteceu com o setor sucroalcooleiro, que foi tomado por capitais criminosos durante a crise das usinas de cana-de-açúcar. “Os cartéis entraram na cana para lavar dinheiro, comprando usinas falidas. Agora o etanol de milho é o novo alvo”, alerta.
Ele cita a Operação Carbono Oculto, da Polícia Federal, Receita Federal e Ministério Público paulista, que revelou esquemas de lavagem de dinheiro e créditos falsos de carbono. “Quando a cadeia enfraquece, entra quem tem capital fácil. O milho é o próximo risco. Precisamos aprender com o passado.”
Sementes piratas
Mesmo com campanhas institucionais, o mercado ilegal avança sobre insumos e sementes, afetando a competitividade e a imagem do agronegócio brasileiro. Segundo a CropLife Brasil, associação civil dedicada a pesquisa de soluções para a produção agrícola sustentável, 11% da área plantada de soja no país usa sementes piratas — o equivalente à área cultivada em todo o Mato Grosso do Sul — com prejuízo anual estimado em R$ 10 bilhões.
A entidade intensificou recentemente a cooperação com órgãos públicos: na quarta-feira, 8 de outubro, promoveu em Campo Grande a capacitação de 158 servidores e agentes de fiscalização da Polícia Federal, Ministério da Agricultura, Receita Federal, Ministério Público e polícias estaduais. O treinamento incluiu identificação de produtos falsificados e o uso de espectrômetros, capazes de detectar adulterações químicas em minutos.
Além disso, a CropLife reforçou ações de formação a distância, em parceria com a Escola de Segurança Multidimensional da USP, e informou que 1.400 toneladas de defensivos ilegais foram incineradas nos últimos quatro anos, com 212 toneladas apenas em 2024. Segundo a entidade, a articulação entre Estado e setor privado é essencial para conter o mercado paralelo.
A alta carga tributária, a burocracia no registro de produtos e a fragilidade das penas criminais criam o ambiente ideal para o avanço do mercado paralelo. “O cara sabe que, se for pego, não fica preso. A pena é branda, o risco é mínimo”, critica Seraphim. “E o próprio sistema tributário empurra o consumidor e o produtor para a ilegalidade.” O especialista diz que o combate a pirataria exige esforço integrado de governos e setor privado através de ações permanentes e técnicas de rastreabilidade lastreadas pela tecnologia.