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Das raízes à radicalização: a alegoria das figueiras e a supressão do outro

Por Natália Pereira Novo (*) | 26/06/2025 07:30

De radix, ou raiz em latim, deriva o substantivo radicalis, que significa origem de uma palavra ou de alguém. Assim, radicalis, ou radical, nos remete à linhagem de alguma coisa, sua ancestralidade, local simbólico onde o sujeito se originou. Originar-se de um local, de uma família, de uma religião ou de uma sociedade não significa que se esteja parado lá, de forma estática e ancorada, visto que tanto a linguagem quanto os seres são vivos, dinâmicos e por isso modificam o ambiente assim como também se permitem ser modificados pelo que é externo.

Graças à impermanência dos seres, da linguagem e do ambiente, de vez em quando nos enraizamos, como num movimento de retorno às origens, em busca dos referenciais que nutriram e moldaram a nossa essência. Assim, ao nos depararmos com uma organização familiar, um conjunto de ideias ou um ecossistema muito diferente do de nossa origem, crescimento e desenvolvimento, procuramos nossas “raízes” para nos assegurarmos de que estamos corretos em nossa forma de ser, de agir e de pensar.

Radicalizar, por sua vez, é uma ação derivada da palavra radicalis, que tem uma conotação difusa de se levar algo ao limite, ao extremo, por vezes com cunho político e pejorativo. E por quê as pessoas estão se radicalizando cada vez mais? Por quê é comum e corrente encontrarmos racismo, transfobia, etarismo, misoginia e outras formas de estigmatização, muitas vezes acompanhadas de atos de agressividade extrema? Sabemos que a globalização proporcionou a emigração, levando cidadãos de diversas culturas, religiões, símbolos, culinárias e hábitos para o seio de sociedades hermeticamente fechadas em seus hábitos e convicções.

E as sociedades que recebem imigrantes, acolhem, assimilam e apreciam o intercâmbio cultural, tanto que cidades-ícones como Paris, Lisboa, Londres e São Paulo são referência de restaurantes de culinárias estrangeira, dando saciedade à necessidade que temos de vivenciar o ineditismo, experimentar o desconhecido e a ele retornarmos todas as vezes que estivermos cansados de nossa rotina, hábitos e costumes. Quem não gosta de comer sushi de vez em quando, de assistir um filme estrangeiro ou de viajar para um lugar desconhecido?

Contudo, se temos carência do que é heterogêneo, diferente e inédito, por que alguns de nós radicalizam-se frente a opiniões políticas, opções sexuais, religiões, hábitos alimentares e estilos de vida diferentes? É contraditório que ao mesmo tempo que o sujeito necessite do diferente também o rechace, o estigmatize e o ameace.

No campo dos instintos, parte constituinte do nosso aparelho psíquico, o id é o responsável pelo impulso de destruir e aniquilar tudo o que nos ameaça e supostamente coloca em risco a nossa existência. Já no campo do imaginário, o medo faz com que desejemos aniquilar tudo aquilo que é uma ameaça simbólica à nossa subjetividade.

O inimigo está dentro de nós e por isso não o enxergamos. Ao não o enxergar, projetamos nossos impulsos destrutivos para fora e, em vez de sermos aniquilados, passamos a desejar o aniquilamento, a destruição e muitas vezes a inexistência do outro, sentido como grande ameaça aos referenciais que fundamentaram a nossa essência. Assim, em um movimento de proteção, voltamos à nossas raízes para termos nossas certezas validadas, confirmadas, ratificadas e muitas vezes cegamente idealizadas.

Em um mundo globalizado, onde as raízes cada vez mais devem se entrelaçar para dar sustentação à pluralidade da raça humana, é desastroso que se trabalhe de forma ativa pela pulverização da subjetividade alheia. Faz-se o aniquilamento do outro todas as vezes que substituímos palavras por imagens, padronizando a comunicação de forma que não mais se apresentem a singularidade da expressão verbal e escrita de cada um. Faz-se o aniquilamento de uma sociedade quando se permite que a informação, ativo precioso dos nossos tempos, não seja amplamente acessível e, principalmente, seja falsa, inverídica e tendenciosa, corroendo a credibilidade de suas bases democráticas de sustentação.

Algumas figueiras possuem raízes largas e tronculares que crescem em direção à base e ajudam a suportar seus próprios ramos pesados. Outras, as figueiras estranguladoras, necessitam de árvores distintas para lhe darem sustentação e, no entanto, matam-na com suas raízes aéreas, impedindo que a árvore que a hospedou receba a luz do sol e retire água do solo, asfixiando-a até a morte.

Assim como figueiras, pessoas radicais usam seus fundamentos como armas para silenciar, subtrair direitos essenciais do outro e lhes asfixiar o pensamento, pois diante de suas raízes aparentemente robustas mas ineficientes para garantir-lhes a sobrevivência, hospedam-se nos valores do outro, forjando-os em direção à sua própria conveniência e negando-lhes a autonomia e a liberdade de expressão, uma relação de benefício único que inevitavelmente levará a morte real ou simbólica do outro.

Em suma, é crucial estar atento aos perigos da radicalização. Sob o pretexto do purismo e da conservação de crenças e valores, podemos inadvertidamente destruir a diversidade e a convivência harmoniosa — tal como a figueira estranguladora que, ao buscar sustentação, acaba por sufocar e eliminar a árvore que a acolheu.

(*) Natália Pereira Novo, médica psiquiatra da Coordenação de Saúde Ocupacional do Decanato de Gestão de Pessoas da Universidade de Brasília (DGP/UNB)

 

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