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Beba das Crônicas

As paredes da redoma e a poesia

Por André Luiz Alvez | 02/11/2023 08:46

Dizem que as melhores poesias são feitas na tristeza.

Não existe poeta feliz, os melhores são os mais tristes.

Ainda bem que não sou poeta, embora consiga às vezes algumas palavras casadas, tocando o meu rosto quente nesses tempos difíceis:  a tortura engolindo a arte, meu pescoço arde, o nó, o aperto. Acorda, a corda, pássaro preto.

É o rascunho de uma poesia boba. Ou não. Não sou capaz de avaliar. Deixemos de lado a tristeza e a poesia.

Então desce do céu um zumbido de abelha, o barulho da cidade, tudo o mais, e as letras da crônica começam a dançar. Sossego meus passos diante do enorme edifício. Elevador de vidro, vista panorâmica, o meu destino é o vigésimo andar.  O copo de garapa só faz aumentar a minha sede, sede de água, um litro gelado, beber no gargalo, num gole só.

Poeta bom é aquele que sofre e eu só sinto medo de cachorro, de dentista, de fardas e bandeiras, do homem fazendo gestos de armas com as mãos no peito, bem perto, do lado direito da calçada.

Eles não entenderam o sagrado significado da cruz, da violenta ignorância que mata crianças em nome da paz.

O painel aponta, o elevador está no sétimo andar e não há ninguém ao meu lado. Sinto estranho conforto: viajar sozinho não sufocará o meu grito. Como se fosse provocação, o elevador desce, a porta se abre e, no mesmo instante, ao meu lado se forma um grupo de nove pessoas.  Poeta bom é aquele que sofre, penso novamente e convoco a companhia de Belchior. Ele me encara, sorri. “medo, medo, medo” ele diz e de mim escapam palavras no pensamento, daquelas casadas, de papel passado: perto de mim há um teclado, mudo por enquanto, no tempo que observo as estrelas e espero a frase rimar. Perto de mim há uma garrafa de vinho, do álcool que não posso beber, reserva da vida que vejo passar. Perto de mim há vontades, sentimentos diversos, que exijo calar. Perto de mim há verdades de ninho e não consigo alcançar, perto de mim há um cálice de vinho. Eu venho, eu vinho.

É sempre assim, palavras me atingem sem que eu possa evitar. Será que escrevi isso? Sofro quando não descubro. O elevador prossegue a viagem e me encaixo no aperto. Quem será que imaginou um elevador feito de vidros?  A senhora tímida, solitária, carrega a enorme bolsa de couro apertando os seios. Será o mesmo medo que o meu? Dois homens conversam sobre o sono, um não consegue dormir, o outro dorme demais. Olhei para eles fazendo rosto carregado de respostas, domino o assunto, zolpidem é a solução, mas fiquei calado, a ânsia refletida na parede de espelhos.

A capa da morte é feita de vidro. Medo, medo, medo, cantamos, Belchior e eu.

O casal troca olhares cúmplices, ele me cumprimenta num leve aceno de cabeça, ela usa cabelos coque e olha fixamente o piso do elevador. O brilho do relógio nos pulsos do senhor reflete as paredes da redoma e o abismo é ali também. Quem é que usa relógio de pulso nos tempos atuais? E se a luz apagar? Busco um desvio de pensamento, uma fraqueza boba – pensar forte faz acontecer. Duas pessoas descem no terceiro andar, mas outras duas entram no elevador. Preciso de algum assunto de asas – penso – e como se fosse combinado, um inseto pousa no lado de fora do vidro, se debatendo diante da visão falsa da liberdade. Bicho estúpido, basta virar para o lado e voar longe, depois apanhar carona no vento até alcançar aquelas estranhas nuvens no céu. Belchior se apoia nos meus ombros, inverte a situação, ele sempre foi o meu apoio. O homem no canto se veste de forma elegante, usa gravata, o cabelo grudado de brilhantina, tem o rosto seguro, não se importa com a possibilidade de o vidro arrebentar de repente e estragar o seu penteado.  Belchior resolve assoprar no meu ouvido uma canção: “meu coração cuidado é frágil, meu coração é como vidro”... E sorri enquanto me afasto até o canto. A fragilidade do vidro é como uma folha de livro ao vento.  O inseto já não insiste, quieto, absorto na languidez dos derrotados. Entorto os olhos, dou de frente com outro senhor, vestido de forma simples, calça jeans, camisa de algodão, o sapato de couro marrom. Deve ter a minha idade. Sinto uma alegria efêmera, como quem se alegra ao ver um companheiro de batalhas – éramos jovens nos anos oitenta – penso num sorriso e ele parece captar, devolvendo o sorriso como quem lê pensamentos. Conto na mente cada ruga do seu olhar e fico imaginando que pinta os cabelos, porque as bolsas inchadas abaixo dos olhos não combinam com o brilho negro dos fios esvoaçantes na cabeça redonda. Duas pessoas descem no quinto andar, a religiosa faz o sinal da cruz, o cabelo da moça do dragão tatuado no braço deixa um rastro de lavanda. Todos descem quase ao mesmo tempo, restando Belchior e eu nos cinco ou seis andares que faltam.

Poeta bom é aquele que sofre, filtro a tristeza e assopro as palavras: na redoma de vidro, o poeta sofrido, o inseto, o dilacerante zumbido, meus medos, Belchior, no sopro bemol, engolido o sustenido.

De repente, num bafejo do vento, o inseto encontra a liberdade, o voo torto para longe, o final da angústia. Fecho os olhos, imagino a alegria das asas rumando em busca das nuvens ligeiras em formas de pombas no céu.

Vigésimo andar, luz verde, alívio, vida.

Na volta, optarei pelas escadas, sairei à rua apressado, o medo jogado fora e arrancando do peito a dor do poeta que não sou, levando para longe a tristeza que só sinto às vezes.

E que tudo mais vá para o céu, como já disse o poeta Belchior.

Por André Luiz Alvez

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