Polaroides de saudade, entre luz e nostalgia
Essa noite sonhei com pai.
Isso não é comum de acontecer. Estávamos numa roda de conversa e samba. De repente ele se levantou, sorriu para mim e me chamou para dançar. Era meu pai aos sessenta anos.
Depois, sorrindo ainda, já era o rosto do meu pai mais moço, me estendendo a mão.
Malandro.
Dançando devagar, devagarinho para o lado.
Aceitei na surpresa de quem não sabia do molejo do pai.
Mas saudade é ferrugem que come devagar até mesmo as bordas dos sonhos: os dois músicos começavam a tocar, mas paravam, procurando a música certa por várias vezes, a música que nunca chegou.
Eu e pai esperando. Mãos dadas enquanto pedíamos aos músicos um samba alegre, pois se tem coisa que sabe ser bonita e triste é samba.
Ele sorriu novamente para mim, depois olhou para o lado e seu rosto de moço sorria para alguém. Ficou na minha memória os cílios longos, o rosto de perfil.
Não dançamos.
Ao longe, minha gatinha miando, o despertador tocando.
Fiquei no campo da saudade, da melodia não encontrada, no samba que não dançamos, das conversas que não tivemos, das suas faces que não conheci.
Meu pai faleceu em 1999. Tantos anos. Entre várias lembranças que tenho dele sei do coração generoso.
Falava conosco a "língua ao contrário". Quando chamava os filhos, éramos Niatã, ToNa, ZéJo, CoRRi... E todos os outros. Éramos dez.
Eu era Niatã.
Tânia quando o tempo era de bronca.
Como todas as pessoas que perdemos cedo, sempre aprendo algo novo sobre ele na fala de outros. Mas lembro que me trazia pedras lisas e redondas e me ensinou a pintar flores sobre elas. Bebia um pouco demais, falava alguns palavrões... Também era um pouco triste, fechado. Para mim, muito alto. Tinha discos de Adoniran Barbosa, Aguinaldo Timóteo, Benito di Paula, Alcione, Tim Maia, Bezerra da Silva. Outros que não me lembro.
Tenho saudades dele quando escuto "O mundo é um moinho", mas nunca o ouvi cantarolar, quem sabe qual, a sua música favorita.
Hoje eu me lembro do pai dançando. Os sonhos também tem dom de habitar/inventar memórias
E esse texto é só mais um instantâneo de saudade.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.