Um passeio de bike, conflito de gerações
Pedalo à noite pela ciclovia da Gury Marques e me alcançam dois garotos com suas bikes implorando graxa nas correntes. O barulho me sobressalta. Andar à noite, só, é sempre um exercício de mandinga. Passam adiante, rindo um pouco, pedalando muito, e seguem. Acho jeito para uma fotografia. A lua que sorri, é nova. E segue luzindo entre as folhas do pé de bocaiúva. Adiante, os garotos estão parados e esperam que eu passe entre eles. Calculo o tempo e a agilidade para tirar o canivete preso entre o punho, o elástico de cabelo e a manga da camisa de pedal. Na certa querem me levar o celular! Quem sabe a bike. Quem sabe a delícia de usufruir da liberdade de ir e vir, tão cara ao feminino! Preciso passar, e passo, entre medo e enfrentamento, a tempo de ouvir um “e aeh, tia!”. Mais um trecho, e eles me alcançam outra vez, fazendo manobras, falando alto, rindo muito. Meu canivete pronto. “Tamo passando, tia!! Depois seguem. Diminuo o ritmo. Deixo que ganhem distância. Descanso do estado de alerta. Penso sobre o homem morando no canteiro da avenida. O acampamento infindável. A luz que só apaga quando a lua dorme … lá estão eles, os garotos. Agora no Lago, e já soam um pouco familiares, mas o canivete segue de prontidão.
— Oh tiaaaa!
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— Quêêêê?
— Já já nóis te alcança de novo!
— Ah, eu duvido!
Pedalo mais rápido e eles ficam um tempo parados, rindo. Depois, em disparada, vêm diminuindo a distância, fazendo manobras. Pedalo em pé também. Um deles, deita com a barriga sobre o banco e segue rindo. Diminuo para deixar que passem, depois os alcanço na descida e tiro os pés dos pedais. Grito para eles “Sin los pies!” Nem sei se conhecem a piada da geração que não é a deles. Mas riem e fazem outras manobras. A rua de casa vem encerrar a interação. “tchau tia”, escuto enquanto viro a esquina rindo leve.
Às vezes é sobre tudo isso mesmo — levar a alma para brincar.
(*)Eva Vilma é poeta e professora.
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