ACOMPANHE-NOS     Campo Grande News no Facebook Campo Grande News no X Campo Grande News no Instagram Campo Grande News no TikTok Campo Grande News no Youtube
AGOSTO, TERÇA  19    CAMPO GRANDE 32º

Beba das Crônicas

Entre escombros e palavras: a escrita como resistência

Por Lucilene Machado (*) | 19/08/2025 13:35

É difícil escrever qualquer coisa quando guerras hostis acontecem debaixo de nossos olhos. Parece que tudo o que vamos dizer perde o sentido, perde a essência, coloca em xeque os valores, as religiões, a arte... a única coisa que passa a importar é a criação de mecanismos de sobrevivência. As guerras têm esse intento de criar tensões, angústias, nervosismos, de nos colocar mentalmente num campo minado onde mover-se pode ser catastrófico. É mais cômodo ficarmos quietos do que sermos profetas das mais violentas notícias. Ou, apenas rogarmos com todas as forças que isso termine logo, que crianças não morram, não fiquem órfãs, não tenham suas ingenuidades esfaceladas, seus sonhos sequestrados ou sejam endurecidas por conta de “necessidades” adultas não necessárias.

Mas, quem escreve tem a responsabilidade, entre outras coisas, de narrar os acontecimentos no tempo gerúndio. A palavra dita depois é alterada pela nossa lembrança do fato, ora fica mais grave, ora alivia-se o seu fardo trágico, ou a perdemos de vista. No final da Primeira Guerra Mundial (1914-18), Walter Benjamin escreveu que “os combatentes tinham voltado mudos do campo de batalha". Não retornaram mais ricos em experiência comunicável, prossegue ele, e sim mais pobres. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Em 1933, Benjamin retoma a mesma ideia “Os soldados voltaram silenciosos do front. Ponto.” vale registrar que o tema benjaminiano do silêncio nas trincheiras aparece em outras obras e questiona a mudez que a guerra deixa nos diretamente envolvidos. É um assunto que dói tanto que o sujeito morre sem voltar a falar a respeito.

O absurdo que ronda a experiência do campo de batalha precisa das palavras exatas para manifestar os seus silêncios e a sua falta de sentidos. E talvez isso arranhe o impossível. Ficamos mudos como os soldados diante das verdades que mais parecem falsas informações. Tudo é turvo e confuso. Porém, necessitamos convocar o agora, com suas lentes de aumento, para que as narrativas fabricadas por interesses específicos sejam desmascaradas.

Desde sempre as guerras estão atravessadas por histórias deturpadas. Desde sempre, as fake News abundaram os contextos de batalhas. A ficção que reflete a realidade em seus enquadramentos mais genuínos mostra como os combates se valem das falsas verdades. É vasta a literatura que tem a guerra como pano de fundo. Quixote é quixotesco porque acredita no anacronismo das narrativas cavalheirescas. Acreditava-se em herói, vendia-se a ideia de salvador do mundo, mas fora disso, era um homem resistindo à sua própria demolição, resistindo à máquina do mundo esvaziada de sentido. Mas, ignorando o conhecimento, ele seguiu com seus planos mirabolantes, sem norte algum. O que fazer do sujeito impotente, tosco, para quem o heroísmo é um ideal completamente inacessível?

Não é raro recair sobre esse tal “herói” a expectativa de encontrar as chaves para a solução do conflito. Enquanto isso, a coletividade agoniza, incapaz de escapar da espiral de sua própria destruição. Seguem enfeitiçados pelo “encanto” de um herói, ou rendem-se à explicação mal explicada de que o conflito é a encarnação da vontade dos deuses.

Não há heroísmos nas guerras. Talvez o heroísmo esteja na recusa do ódio como linguagem e na união de vozes combinadas em coro, nas mãos entrelaçadas... O contrário disso é quixotismo. É recusar o pensamento lógico e instrumentalizar o medo. A arte nesse cenário pode ser a lógica capaz de reverter a destruição interior. Escrever, neste caso, é dizer, com todas as letras, que estamos aqui, que não seremos cúmplices do silêncio. Porque, se a guerra insiste em apagar vozes, a escrita é o gesto de reanimá-las. É o sussurro que desafia o estrondo, o traço que sobrevive ao fogo. Escrever, hoje, é um ato de coragem contra a mudez imposta. É reunir cacos de sentidos em meio aos escombros. É lembrar, enquanto tentam nos fazer esquecer. É insistir em humanidade, mesmo quando o mundo parece desistir dela.

Há ainda mãos que insistem em juntar palavras como se fôssemos capazes de remendar o mundo. Vozes que tentam sussurrar sentidos mesmo quando tudo nos parece ruído. A esperança, aqui, não é abrigo passivo, é o ato delicado de recusar o ódio, de acender uma fresta de luz entre os escombros, de lembrar que ainda somos humanos, mesmo quando tudo tenta nos desmentir. E talvez, no gesto pequeno e cotidiano, de quem não desiste de dizer,  possa resistir um pequeno e verdadeiro heroísmo.

 

Os artigos publicados com assinatura não traduzem necessariamente a opinião do portal. A publicação tem como propósito estimular o debate e provocar a reflexão sobre os problemas brasileiros.