“Extinta” em 1976, etnia Kinikinau sobrevive graças à terra emprestada
“Nem eu mesmo sabia quem era, me confundia com os Terena”, conta Rosaldo, que saiu em busca do passado do "povo guerreiro"
Kinikinau. A etnia de nome diferente e que desde quinta-feira (dia 31) está no noticiário após desocupação de fazenda em Aquidauana sem ordem judicial tem histórico de ter sido declarada extinta em 1976 e de viver em terras emprestadas por terenas e kadiwéus.
“Nem eu mesmo sabia quem era, me confundia com os Terena”, conta o professor Rosaldo de Albuquerque Souza, que em dissertação de mestrado pela UNB (Universidade Nacional de Brasília) foi em busca da história do “povo guerreiro”, significado da palavra Kinikinau.
- Leia Também
- PF valida ação da Polícia Militar na retirada de índios de fazenda
- MPF recebe vídeos e instaura procedimento sobre retirada de índios
Os registros mostram que o povo indígena veio do Chaco Paraguaio e se fixou na região de Miranda. Conforme Rosaldo, o processo migratório aconteceu por fatores como perseguições feitas pelo governo paraguaio e a Companhia de Jesus na tentativa de “domesticar” os indígenas.
Já em solo onde hoje é Mato Grosso do Sul, uma nova dispersão da etnia aconteceu com a Guerra do Paraguai. “A guerra ajuda a eliminar grande parte dos homens”, conta Rosaldo.
De acordo com a pesquisadora Aila Villela Bolzan, os Kinikinau foram compulsoriamente convocados para lutar ao lado das tropas luso-brasileiras na Guerra da Tríplice Aliança. Também chamado de Guerra do Paraguai, o confronto foi de 1864 a 1870.
“Os Kinikinau sofreram ataques aos seus aldeamentos de Miranda e Albuquerque, momento em que procuraram abrigo na região da Serra de Maracaju, local utilizado para que se protegessem enquanto as suas aldeias estavam invadidas, e desde então, alguns se estabeleceram em Nioaque nos aldeamentos dos parentes Terena”, afirma Aila.
Depois da guerra, ao retornar para a antiga aldeia, o território já estava ocupado. “Sendo violentamente expulsos e dispersos, ainda na primeira metade do século XX, por fazendeiros e famílias que estariam à procura de terras para o desenvolvimento da pecuária e agricultura”, afirma a pesquisadora, autora da dissertação “Os Kinikinau de Mato Grosso do Sul: a existência de um povo indígena que resiste”.
A dispersão os levou a morar em terras emprestadas de outras etnias. A maior aldeia é a São João, localizada em Porto Murtinho, território dos Kadiwéus. O começo foi com uma família de 12 pessoas. Segundo Rosaldo, a área cedida ficava na entrada da aldeia e o grupo teria função de sentinela, alertando sobre a presença de não indígenas. O agrupamento virou a principal aldeia, mas sem identidade de etnia Kinikinau.
Na década de 1990, o antropólogo Giovani José da Silva, que trabalhava na Secretaria Municipal de Educação de Porto Murtinho, promoveu reuniões na aldeia São João para conhecer os moradores. Lá, foi esclarecido que o povo não era terena, mas Kinikinau. “Assim surgiu o resgate da etnia”, diz Rosaldo.
De acordo com ele, os pais não questionavam o registro de seus filhos em outra etnia para evitar transtornos com o chefe de posto da Funai (Fundação Nacional do Índio). Rosaldo, por exemplo, tem identidades das duas etnias.
Na última década, famílias deixaram a aldeia em Porto Murtinho e formaram a aldeia Mãe Terra, em Miranda, com apoio dos terenas. Atualmente, são 500 indígenas da etnia, que existe somente em Mato Grosso do Sul. Em tantos anos de silêncio, a Língua restou praticamente morta, sendo falada por apenas uma família.
Retirada – Na manhã de quinta-feira, cerca de 200 indígenas ocuparam a fazenda Água Branca, e, Aqudauana. Eles exigiam a desocupação imediata da propriedade. Na sequência, no período da tarde, houve a chegada da polícia. A fazenda foi desocupada sem ordem judicial.
Em vídeo compartilhado nas redes sociais, um dos líderes da ocupação aparece com a cabeça ensanguentada e relata ação truculenta.
Segundo a Sejusp (Secretaria de Justiça e Segurança Pública), a ação da PM (Polícia Militar) combateu prática de ameaça, furto qualificado, danos e crimes ambientais.
Os Kinikinau reivindicam área de quatro mil hectares, mas a fazenda Água Branca não tem um grupo oficial para estudo de terra indígena.