Para sumiço não ser fatal, Vaney passou a ser os olhos do marido com Alzheimer
Há 8 anos com a doença, Lude precisa usar cordão de identificação e é rodeado por outros cuidados
“Eu passei a ser os olhos dele, os pés que guiavam”, diz Vaney Simioli.
RESUMO
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O texto relata o impacto do Alzheimer na vida de um casal, onde a esposa se torna cuidadora integral do marido, enfrentando desafios como a desorientação espacial recorrente dele. A experiência destaca a importância da adaptação e da busca por soluções criativas, como o uso de aplicativos de localização e colares de identificação, em vez de proibições. Além disso, o texto apresenta um grupo de apoio para familiares e cuidadores de pessoas com Alzheimer, oferecendo suporte emocional e orientações práticas para lidar com os desafios da doença, enfatizando a necessidade de adaptação da rotina e a criação de um ambiente seguro e acolhedor.
O primeiro sinal de Alzheimer veio quando Lude Simioli Junior, de 70 anos, voltou para casa a pé, se esquecendo que havia ido de carro para o trabalho. Já se passaram oito anos desde esse episódio e o diagnóstico que levou Vaney Simioli, de 50 anos, a cuidar de forma integral do marido.
Engenheiro agrônomo, Lude tinha 63 anos quando apresentou a doença em sua forma precoce. Hoje, ele é um paciente paliativo, está há 1 ano e 4 meses acamado, então não consegue mais andar ou fazer qualquer outra atividade sem auxílio de Vaney ou dos técnicos que trabalham no sistema home care - cuidado em domicílio.
Mas, bem antes de chegar nesse último estágio do Alzheimer, Lude também teve episódios de sair de casa, se perder e não conseguir voltar sozinho. Situações assim acontecem e não é por falta de cuidado dos familiares. Porém, em alguns casos o final não termina com a volta para casa como sempre aconteceu com Lude.
Em outros cenários, a história tem fins semelhantes a de Joaquim Rangel Gonzales, de 78 anos, que foi encontrado morto na terça-feira (14). O espanhol, que tinha diagnóstico de Alzheimer, caminhou cerca de 13,8 quilômetros da casa dele e foi encontrado já sem vida próximo à área do viaduto da BR-163, sobre a Rua Piracanjuba.
Técnica em farmácia, Vaney recebeu a reportagem para falar quais cuidados precisou adotar em casa, na vida, para conseguir cuidar de Lude quando ele ainda tinha saúde para fazer as caminhadas. O exercício era algo que o engenheiro agrônomo sempre gostou, por isso, a esposa nunca o proibiu. Pelo contrário, encontrou uma forma de permitir sem restringir completamente.
Aliás, nos últimos anos, a vida de Lude não foi permeada por proibições. Essa foi uma das primeiras lições que Vaney aprendeu. “É muito importante a abordagem feita. Você não pode dizer não, bater de frente, você tem que contornar a situação e, às vezes, ser preciso”, frisa.
No caso de Lude, o Alzheimer ano a ano o colocava em um novo estágio. Em uma época, ele ainda se lembrava da esposa, depois passou a reconhecê-la como uma tia e agora ele não fala mais. “A única coisa que ele sabe hoje é o nome dele”, resume Vaney.
Antes desse 1 ano e 4 meses acamado, Lude chegou a se perder pelo menos quatro vezes em ocasiões que saiu para caminhar no bairro e foi encontrado a quilômetros de distância do ponto de partida. Na última vez, o engenheiro caminhou pelo menos seis quilômetros do Bairro Monte Castelo até o Parque das Nações Indígenas.
Sempre com ajuda da filha, afilhada e amigos, ela conseguiu encontrar Lude através de um aplicativo instalado em seu celular que permitia o acesso da localização em tempo real. Ela explica que o aplicativo foi uma das precauções que adotou para monitorar e garantir a segurança do marido.
“Além do aplicativo, seguia ele, eu andava junto com ele pra tudo. Eu cansei de passar o dia todo na 14 de Julho porque ele gostava de ir para lá. No domingo, ele tinha o hábito de pegar o jornal na Afonso Pena e eu levei em todos os domingos que ele andou. Eu me sentava longe para não invadir a privacidade dele”, conta.
Nos primeiros anos, Lude resistiu a ideia de usar pulseira ou um colar de identificação. Por isso, Vaney comenta que depois de algum tempo conseguiu encontrar uma forma de fazer ele usar algo que tivesse sua identificação.
“Ele sempre gostou muito de usar colar, corrente, eu fui no shopping e mandei fazer uma corrente que ele escolheu. Eu fiz o pingente onde tinha endereço, nome e doença”, conta. Além da corrente, o aposentado passou a usar o cordão de girassol com uma foto e dados pessoais com o contato de Vaney.
Com a corrente e o colar, Lude conseguiu assistir os shows do Trio Parada Dura e outros artistas que sempre gostou, sendo um deles o Almir Sater. “Aquilo pra ele era muito prazeroso”, afirma.
Ao falar sobre o Alzheimer, Vaney expõe que a doença do esquecimento coloca um antes e um depois na vida de quem tem o diagnóstico e na daqueles que o rodeiam “Não existe vida depois do Alzheimer, existe sobrevida. A gente vive com o que sobra do Lude”, diz.
Antes de ser cuidado integralmente pela esposa com quem está casado a 13 anos e ter o auxílio de uma equipe formada por médicos, técnicos, enfermeiros, nutricionista e fisioterapeuta, Lude, segundo Vaney, trabalhou na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) por quatro décadas. “Todas as aldeias indígenas de Campo Grande tem um trabalho de Lude prestado. Ele passou quarenta anos na Funai e exerceu todas as funções na Funai”, conta.
Fora do trabalho, ele fazia questão de acompanhar todos os jornais transmitidos na televisão, além de ter assinatura diária do jornal impresso Correio do Estado. Hoje, em casa, no quarto equipado com tudo que precisa para manter a saúde e o conforto, Lude gosta de ver desenhos e filmes da Disney.
“A condição de Lude é muito pesada, mas não é um fardo. Eu digo com toda a sinceridade do mundo que se você não consegue amar o outro você não consegue. [...] Na condição que ele se encontra hoje o amor é essencial, mas ter o cuidado técnico é muito importante”, conclui.
A rede de apoio e a equipe de profissionais são importantes para técnica em farmácia, que também encontrou em um grupo voluntário mais uma base para cuidar de Lude e entender o Alzheimer.
Grupo de apoio - No Estado, o casal Marco Polo Siebra e Ana Claudia lideram o “Grupo de Apoio Alzheimer MS” voltado para familiares e cuidadores da pessoa com Alzheimer. O trabalho voluntário atualmente envolve uma rede formada por 182 pessoas que residem em Mato Grosso do Sul e outros estados.
Esse grupo de apoio surgiu primeiro como associação em 2003 após o Marco Polo defender o título de odontogeriatra e ficar impactado diante do desafio que é cuidar de uma pessoa que tem o diagnóstico.
Ao falar sobre o propósito do grupo, Marco Polo explica que a principal finalidade é acolher as pessoas que chegam e oferecer informações que podem ajudar no dia a dia.
“A medicina só trata com remédio e a medicação tem a finalidade de retardar a doença, mas tão importante ou mais que ela, é o manejo dessa pessoa. Nós recebemos a família para dar acolhimento emocional”, pontua.
Esse manejo com o portador de Alzheimer aliado a um ambiente controlado e uso do remédio, conforme o coordenador, é capaz de estabilizar a doença. “E melhora a qualidade de vida para o portador e a família”, completa.
Antes de falar sobre um dos maiores desafios para quem cuida de alguém com Alzheimer, que é justamente evitar casos onde a pessoa sai de casa e desaparece, Marco Polo e Ana Cláudia explicam quais são as primeiras dificuldades que surgem com o diagnóstico.
Psicóloga, Ana Cláudia diz que é importante compreender que com o diagnóstico aquele familiar será uma pessoa diferente da que você conheceu até então. “Tem que entender que a partir do diagnóstico você vai ter um novo pai, mãe, esposo ou esposa”, afirma.
A não aceitação pode ser um obstáculo, causando apenas um desgaste emocional, por isso, é importante saber que a pessoa com Alzheimer está em fase de reaprendizado. “A família quer que o familiar entenda como se ele tivesse normal, mas ele não sabe mais o que ele não pode fazer. [...] Muitas famílias insistem tendo esse desgaste emocional, querendo que ele faça o que é correto”, esclarece.
Ou seja, mudanças de comportamento vão acontecer porque diante da perda da memória cada indivíduo terá uma resposta. Marco Polo comenta que ao lidar com um parente com Alzheimer, as negativas só tendem a piorar o cenário. “A palavra não, não é uma boa estratégia, quanto mais alegre, lúdico e acolhedor, melhores são os resultados”, afirma.
Entre as recomendações que ele e Ana Claudia dão aos participantes do grupo é tentar ao máximo adaptar o cotidiano para a pessoa com o diagnóstico. “Por exemplo, se eu tenho um avô que tinha uma rotina de fazer atividade, eu não vou privar, eu proporciono isso, mas de forma assistida”, pontua o fundador do grupo.
Proibir a pessoa de fazer atividades que antes faziam parte do cotidiano, segundo a psicóloga, só irá trazer sentimentos negativos. “Eles [familiares] não entendem que isso traz angústia, deixa a pessoa desnorteada porque ela quer fazer uma coisa que fazia há muitos anos”, relata.
Nesses casos é que entra a questão “lúdica”, mas sempre priorizando a segurança. Ana Cláudia dá um exemplo de uma mulher que montou um escritório em casa para que o pai, que já era aposentado, não quisesse todos os dias sair de casa porque queria ir até o trabalho.
Esse exemplo, inclusive, é uma estratégia que evitou que o idoso saísse de casa e se perdesse. Sobre esse assunto, o odontogeriatra fala que por isso se faz necessário contratar um cuidador de idosos, caso a família tenha condições.
“Precisa ter acompanhamento justamente para esse caso de sair sozinho e se perder. Isso é uma coisa que impacta bastante porque não são tantos os familiares que têm condições para manter alguém cuidando dessa pessoa”, declara.
Outra orientação, de acordo com Ana Cláudia, é adotar o uso de uma pulseira de identificação. “A gente orienta a fazer um colar, uma pulseira com QR code. As pessoas se perdem muito, não sabem onde mora, alguns caminham longe, pegam ônibus. Algumas vezes, eles saem de casa porque em determinado momento da doença eles falam que querem voltar para casa”, esclarece.
Dificultar o acesso livre à rua, trancando o portão e ficando com a chave, também é indispensável para evitar que a pessoa não saia e se perca. Também é interessante ter uma rede de apoio no bairro, avisando vizinhos e donos de estabelecimento que o familiar tem Alzheimer.
Caso a pessoa consiga sair, isso pode ajudar, pois um vizinho ou dono de comércio poderá entrar em contato ou auxiliar levando a pessoa de volta para casa.
Marco Polo elaborou um material informativo e educativo sobre a doença do esquecimento, seus sinais, fatores de riscos e outros temas. Para acessar o documento, basta clicar no link.
O Grupo de Apoio Alzheimer MS realiza reuniões mensais de forma on-line e mantém um grupo ativo no aplicativo de WhatsApp. Caso você queira participar ou conversar com um dos coordenadores, os contatos são o (67) 99207-4767 (Ana Claudia).
Dados - Em 2024, conforme dados da Sejusp (Secretario de Estado de Justiça e Segurança Pública), foram registrados 378 casos de desaparecimentos no Estado. Maior parte, 101, ocorreram em Campo Grande.
As estatísticas da Sejusp referentes a pessoas desaparecidas não traz um perfil, como casos de homicido doloso. Por isso, não é possível saber quantas das 378 pessoas desaparecidas eram idosas. A reportagem procurou a assessoria pelos canais disponíveis para ter essa informação, porém não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
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