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Capital

Do condomínio de luxo, vírus passeou até chegar à Chácara dos Poderes

Percurso na Capital mostra que vírus surgiu bem rastreado e em julho, última fronteira foi do outro lado da BR-163

Izabela Sanchez | 14/08/2020 13:15
Na imagem, o primeiro bairro de contaminação, depois a proliferação pela cidade e, na 3ª fase, a covid volta até a mesma região de onde partiu o vírus.
Na imagem, o primeiro bairro de contaminação, depois a proliferação pela cidade e, na 3ª fase, a covid volta até a mesma região de onde partiu o vírus.

Era março de 2020 e a covid-19 acabava de ser declarada pandemia pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Em Campo Grande, o Sars-Cov-2 ainda passeava na região dos residenciais de luxo, da "grife" Damha, nas proximidades do Bairro Maria Aparecida Pedrossian.

Em maio e junho, depois de circular mais um pouco, ele chega ao Tiradentes.  A partir daí, passeou e contaminou até que, em julho, início da curva mais acelerada, chegou a sua última fronteira, a Chácara dos Poderes, bairro do outro lado da BR-163, mas na mesma região da cidade onde a proliferação começou.

Nesta sexta, apenas Morada do Sol, um loteamento de chácaras no sul da cidades, ainda não tem qualquer registro.

Os dados são do Sisgran Coronavírus, modalidade de rastreio por bairros, em tempo real, disponível a toda população. Conforme nota da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), o módulo coronavírus do Sisgran vai ser encerrado no sábado (15), com a justificativa de que, agora, passados cinco meses da pandemia de covid, todos os bairros têm casos.

É a história da pandemia na Capital, com contornos que, na visão de pesquisadores ouvidos pelo Campo Grande News, já eram possíveis de prever. Com quase 15 mil infectados e 222 óbitos registrados até esta sexta-feira (14), o número segue avançando. Segundo especialistas, o crescimento até agora é reflexo da falta de medidas mais rígidas de restrição na circulação de pessoas na cidade.

Primeiro mapa do Sisgran, quando a Capital registrava apenas 3 casos. 
Primeiro mapa do Sisgran, quando a Capital registrava apenas 3 casos.

A tecnologia a favor da Saúde É graças a uma equipe de 7 pessoas que o sistema pôde ser colocado em operação desde março. É o que explica o coordenador de informação e tecnologia da Sesau, Hugo Luiz Silva do Valle, que conversou com a reportagem antes do anúncio da secretaria sobre o fim do módulo. Com ele, na Sesau, 3 pessoas operam a tecnologia.

Hugo afirma que o vírus foi localizado em março na região do residencial Dahma e neste mês, o bairro que mais registrava casos foi o Bairro Maria Aparecida Pedrossian. Em maio e junho, é na região do Tiradentes que ele surge pela primeira vez, e em julho, segundo o coordenador é a vez da região do Parque dos Poderes, onde fica o último bairro infectado até agora, a Chácara dos Poderes.

Em maio, o Vilas Boas era o bairro com mais casos, mas em junho e julho, quem preocupava pelos contágios era o Aero Rancho.

Para Hugo, a tecnologia é uma boa aliada e pode ditar os rumos da Saúde Pública. O que chama a atenção, é que a equipe desenvolveu uma “I.A” (Inteligência Artificial), um robô, com uso de algoritmos em apenas duas semanas. Sozinho, esse robô atualiza o Sisgran coronavírus depois de alimentado com dados de uma planilha, que contém os casos.

"É pelo sistema de notificação, e-SUS-br, do governo. Toda e qualquer suspeita de covid é notificada nesse sistema. Diariamente a gente trabalha essas informações, exporta do e-SUS-br os notificados, armazena essas informações e diariamente o sistema do sisgran alimenta essa base”, explica ele.

O coordenador pontua que a parte “mais custosa” era o conhecimento, que eles já possuíam. “Se foi um caso foi notificado ontem, hoje já estará alimentado no Sisgran, porque ele é gerado junto com o boletim ou até no mesmo dia”, explica.

“A ciência de dados é fundamental nos dias de hoje. Se você mistura machine learning (o aprendizado da máquina, uma das formas de I.A) na ciência de dados com Saúde, a gente consegue até fazer soluções. Há várias tecnologias que podem apoiar. E é uma coisa que chega a ser importante para gestão tomar decisão em tempo hábil. Qual posição tomar”, relatou.


No mapa desta sexta-feira, apenas Morada do Sol aparece sem nenhum caso de covid-19.
No mapa desta sexta-feira, apenas Morada do Sol aparece sem nenhum caso de covid-19.

Quem alimenta a máquina – É uma equipe incansável de Vigilância Epidemiológica em Saúde, da Sesau, com 25 pessoas, que ajuda o e-SUS-br e outros sistemas de notificação a estarem sempre atualizado. Em contato direto com o pessoal da tecnologia e informação, essas pessoas rastreiam casos durante 24h em Campo Grande na URR (Unidade de Resposta Rápida).

É o que explica gerente-técnica da URR, Luciana Miziara, que relata trabalho ainda mais difícil depois que a cidade se tornou cenário para transmissão comunitária do novo coronavírus. Além do e-SUS-br, a equipe também utiliza o Sivep Gripe, sistema de dados do SUS de preenchimento obrigatório em qualquer atendimento de saúde para casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave).

“Quando o paciente é atendido por SRAG, hospitalizado ou vai a óbito, vamos supor na Santa Casa, a Santa Casa tem obrigação de notificar para a URR, que funciona 24h, disponível para profissionais de saúde ligarem e notificarem. A partir do momento em que tem conhecimento do caso, preenche uma ficha de notificação e têm que encaminhar no e-mail e com isso a gente alimenta o Sivep, óbito a mesma coisa, suspeita, vamos alimentando no Sivep”, explica Luciana.

Ela comenta que, com a curva acelerada, às vezes até a imprensa "notifica” a equipe. “Às vezes, acontece, a gente até brinca que a gente não tem bola de cristal, acontece notificação inversa, às vezes vocês da mídia notificam”, brinca. “No início, antes de decretar transmissão comunitária, a gente conseguia vincular os casos:  fulano pegou de ciclano”, disse.

É um trabalho cansativo não só pela quantidade, mas também pelo risco de exposição já que a equipe também vai até os casos. E não só os de covid-19, já que a URR já existia para os chamados “agravos em saúde”. Agora, o problema é que está 90% sobrecarregada com a covid, conta Luciana.

“A gente faz atendimento in loco, além de trabalhar e filtrar essas informações. Notificaram caso no Vila Almeida, a gente viabiliza essa coleta. Notificações informais, a gente vai atrás da informação”, esclarece Luciana.

Com o ritmo da vida praticamente normal e os problemas de estrutura que já precediam a pandemia, é praticamente impossível não haver subnotificação da doença.

“A gente não descarta. A secretaria tem feito trabalho árduo de sensibilização, temos solicitado, temos portaria ministerial que obriga a notificação, mais do que nunca, mas infelizmente acontece sim”, diz Luciana.

Falta medidas – É o que pensa o infectologista da Fiocruz, referência nacional, Julio Croda. O pesquisador elogia as medidas iniciais e cita o rastreio, mas afirma que até São Paulo, por exemplo, restringe a circulação quando o principal indicador, a lotação de UTIs, atinge 90%.

Operações da Guarda Municipal em cumprimento ao toque de recolher têm sido realizadas desde o início da pandemia diariamente, mas Julio comenta que não há comprovação científica de que o maior contágio se dê nas festas.

“Como aconteceu em tudo quanto é lugar, é através desses contatos que existem entre as duas classes, no trabalho, nas empresas. É bem geral e acontece no Brasil todo. É importante entender que em nenhum momento Campo Grande apresenta dados em termos dos pacientes que se infectaram. A maioria dos internados são idosos, mas em nenhum momento existe dados que justifiquem que o contágio é maior nas festinhas”, cita.

As pesquisas, cita ele, já demonstraram que o transporte público é um problema. Até porque, conforme vem mostrando IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as classes mais altas têm condições de fazer o chamado home office, mas o pobre trabalha no setor de serviços ou na informalidade e precisa pegar ônibus.

“Quem tem mais recursos consegue fazer isolamento, têm carteira assinada, não trabalha no comércio informal. Estudos de soroprevalência em SP mostram que existe uma diferença”, cita o especialista, sobre outro dado trazido e aliado a essa realidade: morrem mais pobres de covid-19 do que ricos.

“Há quase o dobro de infectados nos bairros mais pobres do que nos ricos, tem esses dados se você pegar nos dados epidemiológicos os pobres se contaminam mais portanto uma fração maior, e morrem mais. É muito fácil a gente imprimir um discurso de retomada de atividade sendo que os trabalhadores terão que sair, enquanto o que tem maior condição ficam em casa, quem está se expondo é a classe mais baixa, quem vai morrer é a classe mais baixa”, declara.

É o que também pensa o enfermeiro, doutor em doenças infecciosas e parasitárias, e professor do curso de medicina da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Everton Ferreira Lemos. “Nós tivemos os primeiros casos, todos importados, vieram de pessoas que viajaram, foram para outros países, tiveram contato em outras regiões e quando chegaram a Campo Grande trouxeram a doença”, comenta.

Depois das medidas rígidas de abril, quando o vírus começou novamente a circular e já havia se interiorizado em Mato Grosso do Sul, os indícios de que a Capital seria epicentro começam, segundo Everton.

“Por exemplo, abertura de bares, restaurantes, as pessoas podem não ir, mas os funcionários são obrigados, usam o transporte público. Às vezes algumas medidas mais dolorosas devem ocorrer quando você tem indicadores mais importantes”, cita, sobre a lotação em UTIs.

“Essa questão do trabalho é importante. A parte de festa não tem estudo que comprove essa transmissão, é mito, é algo muito volátil para você manter uma linha de causalidade. Aqui em Campo Grande só temos como meio de transporte público o ônibus coletivo, e até o uber é uma linha que nos preocupa bastante”, diz Everton.

Para o professor da UFMS, outra preocupação da vida normal quando se está com muitos casos é que, dificilmente, quem é “suspeito” fica em casa porque pela imensa demanda, há demora nos resultados dos testes, que cita ser de “até 9 dias”. “Ela vai sair, continuar contaminando. Uma vez que não temos uma medida, uma vacina, a flexibilização oportuniza as pessoas a saírem de casa.

“Tem um exemplo na minha família, parentes da minha vó, seis pessoas vivem na casa, cinco idosas, três doentes na UTI do Regional. Se não tivesse uma estratégia para conseguir rápido o teste, provavelmente não ia ter diagnóstico”, conta ele, que diz ter conseguido testar as idosas da família através de um projeto da UFMS.

“Estamos vivenciando um período de grande preocupação, hoje não temos controle, em decorrência da magnitude”, comenta Everton.

Em nota, a Sesau diz que o Sisgran Coronavírus é uma ferramenta que “cumpriu o seu papel num primeiro momento de evitar a contaminação no município e disseminar as informações para a população”.

“Hoje toda a área urbana e partes da área rural encontram-se com casos confirmados, assim o mapeamento não apresenta mais alterações com os novos casos. Os boletins epidemiológicos continuarão sendo divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde”, diz a nota.



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