Em conselhos tutelares, evasão escolar é engolida por denúncias "tarja vermelha"
Com alta demanda, conselhos priorizaram averiguar casos de estupros, maus-tratos e mortes
Na recepção do Conselho Tutelar Norte, no Monte Castelo, a mesa está tomada de pilhas de papéis, que estão sendo grampeadas e organizadas, pacientemente, pelo funcionário. São as notificações de agosto de falta ou evasão escolar de Campo Grande, uma das várias denúncias que chegam diariamente ao conselho.
No conselho, a “UPA de Criança e Adolescentes”, a investigação sobre evasão/falta escolar acaba sendo engolida pelas denúncias informalmente chamadas de "área vermelha", classificação semelhante à usada em hospitais. No caso dos CTs, trata-se de estupros, maus-tratos, abandono e mortes.
O papel de todas as instituições de ensino nos casos de evasão escolar foi novamente evidenciado esta semana, depois que bebê de 4 meses caiu do 3º andar de condomínio do Aero Rancho. No caso específico, a informação é que a mãe havia tirado a outra filha, de 7 anos, da escola, por conta da incompatibilidade no horário de trabalho da mulher com o período escolar. A situação teria sido notificada pela escola.
Segundo a Semed (Secretaria Municipal de Educação), este ano, em média, foram 5.327 notificações somente por falta de alunos, número que nem sempre significa evasão. A julgar pela pilha encontrada somente no CT Norte, um dos cinco em atuação na Capital, o número vai muito além do já oficializado pela pasta e se somam aos que acabam sendo priorizados pela gravidade imediata.
“Tem dias que a gente tem que escolher a pior denúncia”, diz o conselheiro Sérgio Luiz Barbosa, lotado no CT Norte, que atende bairros como Nova Lima e o Noroeste.
Segundo ele, os casos de evasão também são importantes já que muitas vezes mascaram situação de gravidade, como agressão, estupro ou trabalho infantil, mas, na urgência diária, acabam tendo que fazer a triagem, aos moldes do que acontece em hospital. “Por exemplo, criança apanhou do avô, mas não mora com ele, vamos nessa aqui que a criança sofreu abuso”, exemplifica Sérgio Luiz.
Para mostrar a urgência vivenciada no cotidiano, a conselheira Cassandra Szuberki lista o trabalho realizado na última quarta-feira, quando estava na função de apoio na escala, normalmente, o do profissional que faz o plantão noturno. “De dia eu fiz quatro atendimentos gravíssimos”: uma adolescente de 17 anos, usuária de pasta base que estava internada na UPA Nova Bahia; uma adolescente de 13 anos que tentou suicídio; averiguação de denúncia de mãe que estaria tentando vender o bebê e outro caso que vizinho denunciou mulher que estaria espancando os 4 filhos”.
À noite, mais um caso da “área vermelha”: a denúncia de que uma venezuelana teria ameaçado envenenar os 3 filhos “para acabar com sofrimento”. O caso foi registrado na Polícia Civil, ainda sob investigação. "Isso aqui é a UPA de Criança e do Adolescente", diz.
Sérgio Luiz contabiliza que somente ele, um dos cinco conselheiros em atuação no CT Norte, está com cerca de 100 fichas escolares em averiguação. Porém, acaba desviando atenção para casos graves. Ontem, passou o dia em busca de endereço referente a denúncia, sem endereço preciso, de que crianças estariam brincando perto de boca de fumo no Jardim Noroeste.
Para Cassandra, muitas notificações de evasão/falta escolar chegam antes da etapa regular, prevista em lei. “A gente fica sobrecarregado porque a escola não faz o papel que lhe cabe”, disse Cassandra.
A conselheira se refere ao que está preconizado no artigo 12 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), em que a instituição de ensino tem obrigação de informar responsáveis legais sobre frequência e rendimento do aluno. “Não é papel do Conselho Tutelar manter o aluno dentro da sala de aula, isso é responsabilidade da escola”.
Pela LDB, a notificação no Conselho Tutelar é feita quando o aluno apresentar quantidade de faltas acima de 30% do permitido em lei. Hoje o índice é de 25% sobre as horas-aula de 200 dias letivos.
No entanto, segundo Cassandra, quando o CT é acionado, a escola não informa qual foi o procedimento tomado antes dessa etapa. “Muitas vezes, eles [instituição] terceirizam a busca ativa”.
Sérgio Luiz diz que falta pessoal para atender a demanda. Além dos cinco conselheiros, há mais quatro funcionários do setor administrativo, que recebem denúncia e organizam o fluxo de atendimento.
A sobrecarga pode ser vista em números. De janeiro a novembro, o CT Norte fez 2,2 mil atendimentos presenciais, sem contar as denúncias recebidas pelas forças de segurança, via telefone ou secretarias de educação. Isso representa, até agora, que cada conselheira seria responsável por 440 apuração de infração aos direitos de crianças e adolescentes.
Em nota, a Semed informou que o Secoe (Setor de Acompanhamento de Conflitos Relacionados à Evasão e Violência Escolar) realiza formação continuada com diretores e coordenadores para que eles saibam identificar os casos de abusos, maus-tratos e violências e fazer as denúncias ao órgão competente. Esse setor age ainda com palestras preventivas nas escolas e conversa diretamente com os alunos.
A reportagem pediu detalhes de como é feita a busca ativa, quais os principais motivos para ausência escolar e como é acompanhada a notificação enviada aos CTs, mas não obteve retorno.
Conselhos - A Prefeitura de Campo Grande tem projeto de abrir mais três conselhos tutelares para atender a demanda. Em outubro, na eleição, foram escolhidos 40 nomes, sendo 25 para os já existentes e 15 para os novos. A posse marcada para dia 10 de janeiro prevê somente atualizar o quadro dos cinco CTs já em atividade.
Ontem, a Justiça determinou à Prefeitura de Campo Grande que no prazo de cinco dias cumpra a obrigação de criar três novos conselhos tutelares em Campo Grande, sob risco de determinar o sequestro de recursos em caso de descumprimento. A informação da Procuradoria-Geral do Município é que o Executivo ainda não foi oficiado da decisão.
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