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Sem saber ler, Julia diz que sentimento é de raiva e vergonha durante 80 anos

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Aletheya Alves | 12/09/2020 08:00
Aos 80 anos, Julia Onoro da Silva conta que nunca aprendeu a ler e escrever. (Foto: Kísie Ainoã)
Aos 80 anos, Julia Onoro da Silva conta que nunca aprendeu a ler e escrever. (Foto: Kísie Ainoã)

“Às vezes eu tenho raiva, acho que isso que sinto”, a frase é resumo que Julia Onoro da Silva, com 80 anos, faz sobre não saber ler, escrever e fazer contas. Moradoras do Residencial Mário Covas, ela e Marlene Gaúna, de 60 anos, dividem a rua Iemem com histórias de alfabetização.

Há 15 anos Julia mora na via sem asfalto na região sul de Campo Grande. Do interior de Pernambuco, ela conta que só teve contato com alguma escola quando precisou matricular o filho. “Meu pai não deixava a gente estudar e meu filho até tentou me ensinar quando eu já era mais velha, mas não consegui aprender”.

Apegada ao bairro, ela explica que “se vira” para conseguir fazer o básico dos dias com independência. “Aqui na região tem as coisas que preciso, aí quando tenho que assinar alguma coisa coloco minha digital e aviso que não sei escrever”, conta.

Julia Onoro da Silva e Marlene Gaúna são vizinhas na rua Iemem, Residencial Mário Covas. (Foto: Kísie Ainoã)
Julia Onoro da Silva e Marlene Gaúna são vizinhas na rua Iemem, Residencial Mário Covas. (Foto: Kísie Ainoã)

No sentido geral, a pernambucana diz que tenta não dar muita importância para a falta das letras no cotidiano, mas que o preconceito aparece de tempo em tempo.

Eu fui fazer um crediário, sempre consigo. Aí na hora de assinar os documentos, falei para o menino que eu não sabia assinar e ele deu risada. Fiquei com vergonha e pensei que se ele soubesse o jeito que fui criada não ia fazer aquilo.

Julia diz que nessas horas o coração aperta de vergonha, “é ruim também quando eu vou na igreja e vejo todo mundo com a bíblia na mão e eu fico quieta, só olhando mesmo”. Além dela, o marido, de 86 anos, também é analfabeto.

Aqui em casa a gente vive assim mesmo. Quando preciso comprar remédio é meio difícil se eu esqueço o nome, fico tentando lembrar ou preciso levar o documento porque não entendo o que tem escrito.

História parecida é a de Marlene Gaúna, mas que conseguiu a alfabetização básica sem escolaridade. Do interior de Mato Grosso do Sul, ela conta que morou até os 19 anos em fazenda e não teve acesso aos livros.

Marlene Gaúna, de 60 anos, conta que aprendeu a ler depois dos 19 anos. (Foto: Kísie Ainoã)
Marlene Gaúna, de 60 anos, conta que aprendeu a ler depois dos 19 anos. (Foto: Kísie Ainoã)

Depois de ir para a cidade, conseguiu tempo entre os serviços para ir aprendendo a ler e escrever. “Achei necessário e fui tentando, hoje eu consigo. Aqui no bairro não tem só nós duas com essa história, tem muita gente igual”.

Notando as narrativas parecidas, Marlene diz que a maior parte das pessoas analfabetas que conhece são mais velhas. “Tem criança também, mas os mais velhos são maioria mesmo. Acho que porque antes era mais difícil, o problema é que agora essas pessoas continuam sofrendo”.

De acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Educação 2018, divulgada no ano passado, 16,3% da população com 60 anos ou mais em Mato Grosso do Sul era analfabeta.

No total do Estado, foram registradas 104 mil pessoas que chegaram aos 15 anos analfabetos, representando 5% da população nessa faixa.

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