"Temos CNPJ?": ex-coordenador da Apae abriu 4 empresas para desvio de verba
Investigação aponta desvio de R$ 8,163 milhões em recursos que seriam usados para pacientes ostomizados
“Temos CNPJ?”. A pergunta, feita pelo então coordenador da Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais), Paulo Henrique Muleta Andrade, foi feita ao contador João Antônio de Freitas Silva, sendo trecho de conversa que desencadeou esquema de corrupção e lavagem de dinheiro, iniciado em 2019.
Na nova fase da investigação do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), em investigação conjunta com o Gecoc (Grupo Especial de Combate à Corrupção), denominada Operação Occulto, foi identificado que os dois abriram quatro empresas de fachada para desviar R$ 8.163.500,25 da Apae.
Os recursos deveriam ser usado para compra de insumos a pacientes ostomizados, (pacientes que passam por intervenção cirúrgica para abertura ou caminho alternativo para saída de fezes ou urina, além de auxiliar na respiração ou alimentação), mas, foram parar na conta pessoal de Muleta.
O pedido de prisão preventiva e busca e apreensão foi encaminhado à 2ª Vara Crminal, formulado pelo Gaeco, os promotores Adriano Lobo Viana de Resende e Humberto Lapa Ferri. No documento, eles detalham o modus operandi dos dois e como chegaram ao esquema que facilitava o vai e vem do dinheiro desviado.
Na Operação Turn Off, primeira fase da apuração, desencadeada em novembro 2023, o Gaeco já havia identificado que Paulo Henrique Muleta recebia 4% de propina para favorecer a empresa Comercial Isototal, de propriedade dos irmãos Lucas Coutinho e Sérgio Coutinho Junior.
Segundo a investigação, de julho de 2019 a novembro de 2023, os empresários pagaram à Paulo Muleta, em razão da atuação como coordenador-técnico do CER/Apae (Centro Especializado em Reabilitação e Oficina Ortopédica), o valor de R$ 919.852,66 como propina, quantia referente aos 4% dos valores pagos pela Apae, no mesmo período.
“(...) ocorre que a atuação criminosa de Paulo Muleta não ficou restrita ao recebimento de propina dos empresários que mantinham relações comerciais com a Apae. Ela era muito maior do que se imaginava”, relata a investigação.
O inquérito relata que, para ampliar o esquema de desvio de verbas, Muleta e João Antônio “planejaram, criaram e utilizaram, no período de 2021 a 2023” quatro empresas de fachada: Lillo Produtos Hospitalares, Mimedical Comércio e Distribuidora de Produtos Hospitalares, Estomacare Produtos Hospitalares e JA Comércio de Produtos Hospitalares, contratados pelo então coordenador da Apae, em tese, como fornecedoras dos produtos de ostomia.
O curioso é que duas empresas estavam em nome de Paulo Muleta: Estomacare Produtos Hospitalares e Lillo Produtos Hospitalares. As outras duas, Mimedical e JA, foram inscritas em nome do contador.
O modus operandi foi detalhado pelo próprio Paulo Muleta, em mensagem de áudio encaminhada ao contador, no início das atividades ilícitas, em 8 de setembro de 2021, chamando-o de “troca de notas fiscais”.
No inquérito, o Gaeco detalha que “os criminosos compravam certo produto por um valor, cuja nota era emitida da fornecedora real para a primeira empresa de fachada, aberta em nome de Muleta”.
Na sequência, faziam a “troca da nota fiscal”, isto é, emitiam uma nota fiscal da primeira para a segunda empresa de fachada, esta, em nome de João Antônio, simulando a venda dos produtos.
No mesmo ato, faziam nova “troca da nota fiscal”, agora, emitindo da segunda empresa de fachada para Apae, para ocultar o coordenador e simulando a venda dos produtos. “Nestes atos, alteravam o produto e majoravam o valor, falsificando a nota e simulavam a venda para Apae, desviando milhões”. A investigação apurou que, por vezes, os denunciados sequer compravam os produtos antes da falsificação.
No mesmo dia da emissão das notas fiscais, de acordo com investigação, o dinheiro era repassado para empresa de Paulo Muleta, que transferia para sua conta pessoal.
Como fazer? – Antes de chegarem ao esquema consolidado, Paulo Muleta e João Antônio discutiram como iriam proceder para criar empresas de fachada.
No dia 17 de agosto de 2021, o contador diz a Muleta para não colocar a empresa em nome de outros familiares, salvo o da esposa, pelo menos, inicialmente. Porém, no dia 24 de agosto, Muleta alerta que a estratégia não daria certo pois a esposa tinha vínculo empregatício com o TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul).
De maneira emergencial, Muleta resolveu abrir a empresa Mimedical Comércio, em seu nome, em ato formalizado no dia 30 de agosto de 2021. Foi depois dessa movimentação, já em setembro, que ele manda a mensagem para o comparsa, sobre a formalização. “Temos CNPJ?”. Em seguida, pergunta se pode “mexer o doce”. Para o Gaeco, alusão às medidas criminosas que seriam adotadas no desvio de recursos.
Porém, pouco depois, a escolha se mostra arriscada. Um funcionário da Apae estranhou a insistência de Paulo Muleta em contratar a Mimedical como nova fornecedora de insumos e resolveu pesquisar a empresa, descobrindo que estava em nome do coordenador da Apae.

O fato foi relatado e a resposta de Muleta, enviada por email, é que o contador o havia informado que houve erro e que o nome dele havia sido incluído equivocadamente, por conta da locação de imóvel e certificado digital.
Antes mesmo deste fato, Paulo Muleta alertou que a empresa não poderia ficar no nome dele. “Vai dar BO aqui no HU”, diz.
No dia 16 de setembro de 2021, relata que achou a solução, ou seja, a utilização de duas empresas, sendo uma registrada em nome dele e, outra, do contador, o que se tornou o modo de operação padrão.
João Antônio abriu empresa em troca do recebimento de parte dos valores, acordando 10% do ganho ilícito.
No cumprimento dos mandados de busca e apreensão, as equipes do Gaeco foram até os endereços das empresas. No local declarado como sede da Lillo Produtos Hospitalares, com endereço na Vila Carlota, há imóvel residencial, sem qualquer indício de funcionamento de empresa. O apartamento é de propriedade da mulher de Paulo Muleta.
A Mimedical, tem sede declarada em endereço no Bairro São Francisco, mas, no local indicado, não há empresa em nome de João Antônio ou que atue na área de comercialização ou distribuição de produtos médicos e hospitalares. Conforme investigação, a Mimedical já funcionou no mesmo endereço que consta para a Lillo.
Na Estomacare, com sede no Jardim Jatobá, o Gaeco encontrou a casa simples de servidor, sendo imóvel de dois quartos, sala conjugada com cozinha e um banheiro. No endereço inscrito da JA, de José Antônio, há um escritório de contabilidade, sem funcionamento de empresa de comércio de produtos hospitalares.
Logo após a Operação Turn Off, Paulo Henrique Muleta, perdeu o cargo na Apae, em 2023. Nesta nova fase, a Justiça determinou a prisão dele, por haver indícios de que ele queria fugir do País, para Itália. O Gaeco também chegou a pedir prisão de José Antônio, mas o pedido foi indeferido pelo juiz da 2ª Vara Criminal, Robson Celeste Candeloro.
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