Na 2ª maior cidade de MS, muro alto separa riqueza da miséria dos índios
Dourados, a 233 quilômetros ao sul de Campo Grande, é uma cidade em visível desenvolvimento econômico. Com 210 mil habitantes, forte na agricultura, transformou-se em polo regional de prestação de serviços e comércio, recebe novos moradores todos os dias e vê o preço do metro quadrado de terreno disparar. Só uma realidade não muda em Dourados: a miséria dos índios guarani-kaiowá.
Com pelo menos 14 mil habitantes em 3.600 hectares, a reserva indígena, onde mora também um pequeno grupo de terenas, vê a cidade chegar cada vez mais perto, como se encurralasse aquele povo em um cerco que diminui todos os dias.
Miséria, alcoolismo, drogas e violência são vistos como fato comum pelos “não-índios”, mas apavoram a maioria dos habitantes das aldeias Bororó e Jaguapiru. Gente simples, com pouco ou quase nenhum estudo, que vive amedrontada com tantos casos de estupros e assassinatos.
Só neste ano, de janeiro a outubro, ocorreram 23 assassinatos nas aldeias de Dourados e 107 casos de agressões, que incluem brigas, suicídios, espancamento e estupros. Uma dessas vítimas foi a menina de 9 anos de idade, estuprada por oito índios no dia 5 de outubro.
Índios pedem socorro - Os índios de Dourados imploram por mais atenção das autoridades. No dia 14 deste mês, centenas de pessoas caminharam por 10 km para protestar contra a violência e pedir policiamento nas aldeias. Além da venda de bebida alcoólica, que sempre existiu na reserva de Dourados, a comunidade indígena sofre também com o tráfico e consumo de drogas.
Ajuda oficial, como o Bolsa Família, Vale Renda e distribuição de cestas de alimentos pela Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), parece ser insuficiente para acabar com a miséria nas aldeias douradenses. Só neste mês, 3.400 cestas foram entregues aos índios da Bororó e Jaguapiru, mas a quantidade ainda é pouca e vai acabar logo. Outra remessa só em 2015.
Ter uma aposentadoria ou o Bolsa Família do governo federal não ajuda muito os guarani-kaiowá. Comerciantes retêm os cartões de banco para garantir o pagamento e muitas vezes vendem produtos com preços absurdos. Atualmente o Ministério Público Federal move ação na Justiça contra três comerciantes douradenses acusados de explorar 102 índios. Apenas um deles tinha 70 cartões em seu poder.
Nem todos os índios de Dourados vivem na miséria, é verdade. Há famílias bem estruturadas, que cultivam lavouras ou possuem comércios nas aldeias, os filhos vão para a escola e alguns até fazem faculdade. Alguns têm carro ou moto, mas a maioria anda é de carroça e bicicleta.
Riqueza x miséria – Com a ampliação do perímetro urbano, feita há dois anos, a cidade parece mais perto das aldeias, escancarando ainda mais o contraste entre a riqueza dos condomínios fechados e bairros nobres e a miséria dos guarani-kaiowá. São imóveis construídos em áreas particulares, dentro da lei. Mas isso não ameniza a dura distância entre quem tem dinheiro e aqueles vivem na pobreza, como os índios douradenses.
Um belo e imponente exemplo desse contraste é o Ecoville Dourados Residence & Resort, um condomínio fechado implantado pela Plaenge, de Campo Grande, numa área a dois mil metros da reserva.
Com muro de três metros de altura, cerca elétrica, sistema de vigilância por câmeras e portaria vigiada durante 24 horas, o Ecovile é para poucos. O terreno custa acima de R$ 200 mil e tem casa à venda no condomínio por R$ 1,6 milhão.
Construído em área particular, antes uma fazenda, agora parte do perímetro urbano, o residencial de luxo tem 453 lotes e foi implantado há cerca de dois anos e meio. Atualmente pouco mais de 80 famílias endinheiradas já estão morando no local e algumas mansões estão em construção.
Dezenas de índios trabalham nas obras dessas casas, contratados por construtoras locais ou por empreiteiros autônomos. O sindicato da categoria não sabe quantos índios estão empregados no condomínio, nem qual a situação trabalhista deles. Uma visita às obras está agendada para a semana que vem.
Constantemente os guarani-kaiowá são vistos em volta da muralha, pois o condomínio fica no caminho deles entre a cidade e a reserva. Lá os índios que andam de carroça vendendo mandioca e milho não podem entrar.
Nada anormal, afinal eles não podem entrar em muitos outros locais em Dourados. Na manhã de terça-feira, dia 25, uma mulher e um rapaz, índios, tentavam usar o grande muro para se proteger da chuva. Como a tentativa foi em vão, eles pegaram a bicicleta e seguiram em direção à aldeia.
Miséria x miséria – Nas aldeias, a realidade é bem diferente. Barracos feitos com pedaços de madeira, cobertos com sapé ou restos de telha, piso de chão batido, muitas vezes com só um cômodo onde moram, cinco, oito, dez pessoas.
Essa é a vida que leva Gisélia Gonçalves, 33 anos, casada, mãe de seis filhos, sendo dois pequenos e quatro adolescentes. O marido trabalha na lavoura enquanto ela cuida da família, num barraco na aldeia Bororó, onde as panelas se misturam à sujeira e as roupas da família ficam jogadas na terra.
Tímida e constrangida com a vida que leva, a guarani-kaiowá não quis dar entrevista, mas permitiu que a sua triste realidade fosse fotografada enquanto fazia o almoço em um pequeno fogão de lenha.
Quem trabalha diretamente com os índios de Dourados conhece bem a realidade desse povo, que espera do governo muito mais do que cestas básicas e programas sociais.
Choque cultural – “A comunidade indígena guarani-kaiowá não conseguiu superar essa situação de miséria devido às inúmeras mudanças que ocorreram na sua cultura. Eles tiveram que se adaptar à cultura não indígena. Antigamente produziam tudo para suprir suas necessidades, mas a comunidade cresceu e nem todos têm o espaço necessário e adaptado para sobreviver”. A afirmação é da assistente social Erica Chistiane Gabriel, que trabalha no Cras (Centro de Referência de Assistência Social) da aldeia Bororó.
Na opinião dela, o fato de a reserva ficar entre duas cidades – Dourados e Itaporã – só agravou ainda mais os problemas dos índios. “Eles têm fácil acesso a bebidas e outras drogas. Atendemos várias famílias no Cras, mas não conseguimos atingir todo o público que precisa de acompanhamento. Seriam necessários mais dois centros de referência para atender quase 15 mil habitantes”, afirmou Erica.
Luta pela terra – Em quase todas as regiões de Mato Grosso do Sul existe conflito de terra envolvendo fazendeiros e índios que lutam pela demarcação de novas áreas. Mesmo tendo a reserva mais populosa do Brasil, Dourados ficou fora desse cenário na última década. O caso mais recente foi da aldeia Panambizinho, homologada e entregue aos kaiowás em 2004, pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, morto recentemente.
Dois anos atrás, entretanto, índios desaldeados montaram acampamento próximo à BR-163, na região sul do município, e reivindicam a demarcação de uma área entre os bairros Jardim Guaicurus e Parque das Nações, parte dela no perímetro urbano de Dourados.
As terras são particulares, pertenciam a uma empresa de mudas, e atualmente uma imobiliária da cidade comercializa os lotes a preços populares, que podem ser pagos em parcelas.
O MPF (Ministério Público Federal) já alertou para que os douradenses não comprem lotes no local, alvo de um estudo antropológico. Mas as vendas continuam e muito em breve um novo residencial será erguido na área onde os índios afirmam existir a aldeia Ñu-Porã. Certamente com menos imponência que o Ecovile, pois os lotes têm 200 metros quadrados e custam R$ 43 mil.