Trabalho escravo: passado ou presente?
O Código Penal brasileiro é de 1940 e já sofreu diversas alterações ao longo dos seus quase 80 anos de existência. Alguns crimes foram abolidos, como o antigo crime de sedução, previsto no art. 217 e o de adultério, tipificado no art. 240. São casos em que houve o chamado abolitio criminis, ou seja, o legislador entendeu que não se tratam mais de matérias a serem resguardadas pelo Direito Penal, já que esse deve ser visto sempre como a ultima ratio, ou último recurso. Por outro lado, algumas condutas foram inseridas em outros dispositivos, sendo, portanto, ainda vigentes em nosso ordenamento, como é o caso do crime de atentado violento ao pudor, que antes tinha tipificação específica no art. 214 e agora está incorporado no crime de estupro, tipificado no art. 213, ambos do CP.
Essa dinâmica resulta de novas percepções nas relações em sociedade, que implicam, também, em novos crimes ou mesmo em novas adequações de crimes já existentes, pois passam a merecer uma maior reprovação da sociedade e do Estado. É o caso do crime de redução de alguém à condição análoga à de escravo.
O texto original do CP já previa em seu art. 149 o crime de “reduzir alguém a condição análoga a de escravo”, cuja pena era de reclusão, de dois a oito anos. Essa descrição genérica remetia às situações da época da escravidão. No entanto, na década de 90, formas de exploração do trabalhador que se assemelhavam, em alguns aspectos, ao regime dos escravos tradicionalmente conhecido, passaram a merecer a atenção do Estado e da sociedade. Infelizmente, são situações que ainda se fazem presentes em nossos dias. Foi assim que a Lei 10.803/2003 deu nova redação ao art. 149 do CP, tipificando o crime nestes termos:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. (...)”
A nova redação procurou delimitar melhor o tipo penal para propiciar ao julgador condições mais objetivas para enquadrar o agente em uma das hipóteses legais (trabalhos forçados, jornada exaustiva, condições degradantes, restrição da locomoção). Ressalte-se que não é necessária a combinação de uma e outra hipótese, pois basta a ocorrência de uma delas para a caracterização do crime. Na atualidade, fala-se no trabalho escravo contemporâneo.
Apesar da intenção do legislador em tornar mais claras as condutas criminais, o fato é que a tipificação não é tão simples quanto parece. Ainda persistem termos abstratos. O que é trabalho forçado? Quando a jornada é exaustiva? Quais condições de trabalho são degradantes? De qualquer sorte, tanto a doutrina quanto a jurisprudência convergem ao entendimento de que a caracterização do crime em questão só se configura quando há restrição à liberdade pessoal do trabalhador, aqui entendida como a liberdade de ir e vir.
Não é por outra razão que o art. 149 está situado no Capítulo VI, dos crimes contra a liberdade individual, do Título I da Parte Especial do CP. Nesse sentido, o mero descumprimento de normas trabalhistas, em especial aquelas sobre segurança e saúde no trabalho, não é suficiente para a caracterização do trabalho análogo ao de escravo. Ressalve-se, contudo, que esse requisito de ofensa à liberdade de ir e vir só é exigível no Direito Penal. No âmbito do Direito do Trabalho, em especial nas ações da Inspeção do Trabalho, a violação da liberdade não é requisito essencial para a reprimenda estatal. No Direito Trabalhista, os casos envolvem, via de regra, condições degradantes de trabalho, justamente pela inobservância de normas de segurança e saúde no ambiente onde são exercidas as funções, que expõem os colaboradores a condições precárias de insalubridade, periculosidade e de riscos graves para a saúde, o que acaba por afetar o núcleo da dignidade humana do trabalhador.
Tais casos dão ensejo à inclusão do empregador no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo, popularmente chamada “lista suja”. As formas análogas às de escravo e degradantes já não estão circunscritas ao meio rural, pois também são encontradas no meio urbano, como na construção civil e fábricas de confecções de roupas.
Por essa perspectiva, se em um primeiro momento, parece-nos ultrapassado o fato desse crime permanecer em nossa legislação, uma vez que a referência ao “trabalho escravo” nos remete aos tempos de escravidão – o que seria inconcebível –, a realidade é bem diferente quando se fala no trabalho escravo contemporâneo, situação igualmente deplorável.
Logo, a existência de previsão legal para esta infração nos dias atuais ainda se faz necessária e indispensável até mesmo para evitar retrocessos à humanidade que vive em um período onde o capitalismo desenfreado pode trazer grandes desajustes e consequências especialmente aos menos favorecidos, pois são exatamente eles que irão se submeter a todo tipo de situação a fim de garantir ao menos o alimento diário para sua sobrevivência.
O trabalho escravo, portanto, não é mito ou coisa do passado, mas uma triste realidade para muitos brasileiros e estrangeiros que aqui se encontram em situação de miserabilidade e buscam oportunidades de trabalho que estão cada vez mais escassas e exigem cada vez mais conhecimentos, técnicas e habilidades de seus candidatos. A busca pela erradicação deste crime deve continuar e quem sabe num futuro não muito distante, esse dispositivo também possa ser abolido de nosso ordenamento jurídico.
PAULA TOLEDO.
Advogada na Lima, Pegolo e Brito Advocacia (www.lpbadvocacia.com.br). Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Católica Dom Bosco – UCDB.