Musical sobre Tia Eva emociona quem vê seu legado desabar
Descendentes da fundadora se emocionam ao assistir história da matriarca virar espetáculo pela 1ª vez
Nos olhos marejados dos filhos da comunidade Tia Eva, a realização de quem ouviu, mas nunca tinha visto a história ser contada com luzes, música e plateia. Enquanto o legado de uma das fundadoras de Campo Grande desaba na comunidade que um dia se chamou São Benedito, seus bisnetos, tataranetos e descendentes assistem à trajetória de Eva Maria de Jesus ganhar voz.
O musical, que leva o nome dela, deveria apenas celebrar seus quase 100 anos, mas ao invés disso, é um grito cantado que diz: chega. Já não dá mais para fingir ignorância sobre a importância dela na história da cidade; e que reafirma que ela não pode ser esquecida.
A peça vem em um momento importante para a comunidade, que depois de tantas promessas, começa a sentir que enfim está sendo vista pelo poder público. Pelo menos no papel. Calejados devido aos anos de abandonos, 40 moradores do bairro receberam os atores de peito aberto.
O sentimento no final da peça não poderia ser outro a não ser alívio. A emoção vista nos olhos de quem assistiu ao espetáculo de 1h45 é de pertencimento, acolhimento e, quem sabe, esperança.
Pela primeira vez em um teatro e sem conseguir expressar o que sentiu ao ver a Tia Eva ganhar vida de novo, a bisneta Neuza Jerônima Rosa, de 75 anos, conta que assim como ela muitos pessoas da comunidade que marcaram presença na estreia da peça nunca estiveram ali.
Eles arrasaram. Gostei de tudo. É o que a gente precisa. Eu nunca vi teatro, eu amei. Eles têm que se cuidar porque quando a coisa é boa o pessoal tenta derrubar. Eu vou rezar todo dia por eles. Eu sou a bisneta mais brava que a Tia Eva teve. Eu já passei por tantas coisas, mas não largo e não desisto da minha comunidade. Estou há muitos dias em sentimento total de doença e isso me deu uma força tremenda.”
Vânia Lúcia Batista Duarte, subsecretária de políticas públicas e ações afirmativas para a promoção da igualdade racial no Estado, explicou que a comunidade participou da pesquisa para a peça desde o início.
“É um reconhecimento, representatividade, luta. A religiosidade através da Igreja de São Benedito. Estamos emocionados. Nós entendemos que faz parte de todo esse processo reconhecer o protagonismo de Tia Eva na cidade de Campo Grande como fundadora da nossa cidade, então é isso que representa aqui. E todo esse processo de luta e conquista para que ela tivesse esse reconhecimento na sociedade por diferentes povos.”
Para Romilda Pizani, ver o povo em um espaço que socialmente não é frequentado pelos moradores da comunidade é uma vitória.
“Para nós, enquanto pessoas negras isso é muito importante, é muito satisfatório. E hoje estar aqui nesse espaço é ter algo que está falando da vivência de uma comunidade quilombola, das vivências de uma representante liderança dessa cidade, é fantástico. Nós estamos falando sobre não estar mais em um processo de invisibilidade, de não ter esse reconhecimento social".
Ela acrescenta que embora que a comunidade tenha e participe de várias atividades culturais dentro no Tia Eva, "ainda existe uma negação social sobre a importância dessa mulher, que foi uma das primeiras lideranças desse município.”
O Musical
A história traz a África ao até então Mato Grosso e relembra momentos importantes da jornada de Tia Eva. Primeiro como escrava em uma fazenda de Goiás, depois o incidente doméstico que a colocou em uma situação de escravidão ainda pior. Óleo quente caiu em uma das pernas dela e causou uma ferida que não cicatrizava. “A sinhá pediu que ela se afastasse porque os convidados se sentiam enojados”, conta uma das filhas na peça.
Além disso, ela também traz o momento tão sonhado pelos escravos: a carta de alforria. Tia Eva consegue a liberdade aos 50 anos. Mais adiante, a narrativa mostra a migração dela e da família ao que hoje é Mato Grosso do Sul, o vislumbre pelos campos e pelo sossego, a chegada à área de mata próxima do Córrego Segredo e o início da construção da comunidade que hoje é conhecida pelo seu nome.
Tia Eva era conhecida por ser curandeira, cozinheira, lavadeira, parteira e benzedeira. Por aqui ela continuou fazendo isso, mas ganhou nome também por fazer doces e sabão para sustentar a comunidade. O mesmo que fazia quando anos atrás juntava dinheiro para sair de Goiás e comprar as terrras em solo sul-mato-grossense.
A peça também fala sobre a tentativa de tomada de terras e da luta para que o lugar continuasse sendo da comunidade. “Eu não arredo o pé daqui”, conta Tia Eva em uma das falas.
A construção da igreja de São Benedito é o último ponto da peça e, inclusive, é o mais importante na história, porque além de ser o santo protetor da comunidade, ele também é uma esperança para Tia Eva, que pede incessantemente para que ele curasse a perna dela. Em agradecimento, ela construiria uma igreja em homenagem ao santo e festejaria todos os anos com os descendentes.
A data de estreia do musical é emblemática, dia 3 de julho é comemorado o Dia Nacional de Combate à Discriminação. A data também foi a estreia nos palcos da atriz que dá vida a Tia Eva, Jailda Farias. Com vivência na música desde criança, a agora atriz se apresenta no Sesc Teatro Prosa nos dias 4 e 5.
Ela comenta que considera a história grandiosa e que se sentiu honrada em viver no palco Eva Maria de Jesus. “Tia Eva foi uma mulher de garra, escreveu a história dela com muito sacrifício e coragem. Me inspira e interpretá-la para mim foi um desafio e responsabilidade. Eu como indivíduo, penso que pode ser que tenha habitantes aqui, que não conheçam essa parte da nossa história e esse espetáculo será um marco em que trará a visibilidade sobre um pouquinho dessa parte do início de Campo Grande.”
Ela conta que o papel exigiu muita responsabilidade, em colocar vida na história. “Pra mim é um ícone.”
O diretor da peça, Fernando Fernandes, conta que o grupo está há 15 anos batalhando para fazer shows musicais em Campo Grande. Ele pontua que a história da Tia Eva está diretamente ligada à história da Capital.

“Então a gente está contando a história de Campo Grande de um outro ponto de vista, de um ponto de vista periférico. Contar essa história nesse momento é muito importante. Descobrimos que muita gente desconhece totalmente a história de Tia Eva. Então acredito que o espetáculo traz uma grande contribuição nesse sentido: tornar conhecida essa história. É o nosso ato político.”
O grupo, que tem apoio da Uems (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), já contou outras histórias de nomes importantes no Estado como a Rainha do Rasqueado, Delinha, e o Grupo Acaba. “A gente fez isso em Delinha, deu muito certo. A gente trouxe a história dela, muita gente que não conhecia, que acabou conhecendo, isso foi muito bom.”
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